triangulo
familia

Apresentação

cliquelaranja
apresentação

Boas-vindas ao curso “A criança e a cidade: participação infantil na construção de políticas públicas”!

Este curso de aperfeiçoamento compõe um projeto realizado pelo Núcleo de Estudo e Pesquisas sobre a Infância e a Educação Infantil – NEPEI, com o apoio do grupo Territórios Educação Integral e Cidadania – TEIA, ambos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – FaE/UFMG. Sua origem reside no pressuposto de que as crianças são atores sociais, sujeitos históricos e de direitos, entretanto são pouco ouvidas na formulação de políticas a elas destinadas.

O principal objetivo do curso é oferecer um espaço de sensibilização, formação e reflexão acerca da infância, da cidade e da participação das crianças na elaboração de políticas públicas, reunindo agentes diversos na cidade que estão envolvidos com a temática da infância e dos direitos das crianças. A proposta é colocar em diálogo educadores, gestores e técnicos dos campos da Educação, Assistência Social, Cultura, Saúde e Planejamento Urbano, e ainda conselheiros tutelares e lideranças comunitárias de contextos territoriais diversos, desejosos em trocar experiências sobre as diferentes infâncias nos territórios e tecer novas redes de transformação da cidade considerando a participação infantil.

Como pensar diversidade e desigualdade na infância? Onde estão as crianças nas cidades? Por onde e como elas circulam? Como participam da produção do espaço urbano? Como escutar as crianças no processo de construção de políticas e projetos? Como articular políticas públicas para a infância no território, em prol de uma cidade que cuida das crianças? Essas são algumas das questões que serão colocadas ao longo deste percurso formativo. Esperamos que essas questões sejam desafiadoras para você!

Para tanto, este material foi organizado para orientar a sua trajetória. Ele consiste na coletânea de uma série de diversos conteúdos para consulta, que incluem vídeos, textos, podcasts, entrevistas, notícias, dentre outros. Para guiar seus estudos ao longo do curso, algumas perguntas orientadoras conduzirão a conceitos-chave do campo acadêmico dos estudos da infância, políticas públicas e direitos das crianças. Sem perder de vista a dimensão das experiências concretas, esses conceitos se somarão, neste material, a um convite para navegar por várias iniciativas no Brasil e na América Latina que poderão revelar como a participação infantil pode se dar em diferentes contextos. Este material é, portanto, um importante guia a ser explorado da forma que lhe for mais interessante, considerando sua área de atuação e sua disponibilidade. Ele encontra-se organizado em quatro módulos:

  • Módulo 1: infâncias, direitos e políticas
  • Módulo 2: a criança e a cidade
  • Módulo 3: participação infantil
  • Módulo 4: políticas públicas, educação e contextos de participação

A principal intenção desta coletânea de conteúdos e práticas é superar uma perspectiva da criança como vir a ser, reafirmando sua condição de sujeito histórico e de direitos, que constrói o mundo a partir de uma lógica singular e relevante. Esperamos que este curso possa colaborar com a sua prática profissional e com a construção de cidades e políticas mais sensíveis às crianças.

Como ler esse material:

Ao longo do texto, você encontrará hiperlinks com materiais externos, compostos por diversas mídias categorizadas segundo os ícones abaixo:

  • podcast

    podcasts

  • textos

    textos

  • sites

    sites

  • videos

    vídeos

  • entrevistas

    entrevistas

  • noticias

    notícias

  • play
  • Material básico é um conteúdo essencial para o capítulo que sempre aparece na cor laranja.

  • play
  • Material complementar é um conteúdo extra que sempre aparece na cor azul.

Orientações aos cursistas:

O curso “A criança e a cidade: participação infantil na construção de políticas públicas” contará com 05 (cinco) encontros síncronos e 04 (quatro) seminários, cujas datas encontram-se disponíveis no quadro abaixo. Ao longo dos módulos, serão realizados roteiros de atividades que orientarão a elaboração de um trabalho final, que consistirá em um projeto de intervenção ou um estudo de experiência.

Os cursistas poderão interagir por meio do Fórum, na plataforma Moodle. Para maiores informações sobre o funcionamento do curso, acesse a plataforma ou entre em contato com o formador ou o tutor de sua turma. O e-mail da secretaria do curso é cursoacriancaeacidade@gmail.com .


tabela

Calendário da oferta do curso - 2022/2.

Ficha Técnica


Organização:
Levindo Diniz Carvalho
Luciana Maciel Bizzotto

Autoras:
Módulo 1 -Cibele Noronha de Carvalho
Módulo 2 - Maria Fernanda Arias Godoy
Módulo 3 - Maria Fernanda Arias Godoy e
Levindo Diniz Carvalho
Módulo 4 - Aline Regina Gomes

Ilustrações:
Mariana Cabral

Revisão do conteúdo:
Levindo Diniz Carvalho
Luciana Maciel Bizzotto
Maria Cristina Soares de Gouveia

Revisão do Texto:
Olívia Almeida
Design do Ebook e Webdesign
Micrópolis

Desenvolvimento web:
Ian Godoi

Colaboradores:
Eugênia da Silva Pereira
Fábio Accardo de Freitas

Agradecimentos:
Adriana Torres Máximo Monteiro
Kassiane dos Santos Oliveira
Lúcia Helena Alvarez Leite
Mara Catarina Evaristo
Mônica Correia Baptista
Sandro Vinicius Sales dos Santos
Túlio Campos

Você pode baixar o PDF interativo do livro completo clicando aqui.

Como citar este material: CARVALHO, Levindo Diniz; BIZZOTO, Luciana Maciel (Org.). A criança e a cidade: participação infantil na construção de políticas públicas. Universidade Federal de Minas Gerais. 2022.

Módulo 1: Infâncias, políticas e direitos

cliquelaranja

O que você vai ver aqui?

Este módulo tem o objetivo de apresentar e debater um conjunto de ideias que nos ajudam a pensar sobre o processo de construção social da infância, dos marcos legais referentes aos direitos das crianças e das políticas públicas para a infância, abordando as especificidades da América Latina, sobretudo do Brasil. Destaca algumas tensões entre o que chamaremos de infância hegemônica e as realidades diversas e desiguais em que vivem as crianças no contexto brasileiro.

Os tópicos orientadores deste módulo são:

  • Isso é coisa de criança?
  • Direitos das crianças: o marco legal
  • As políticas públicas para a infância
  • O direito das crianças à cidade

1. Isso é coisa de criança?

2

Sebastião Salgado, Crianças em uma acampamento de sem-terra à beira da estrada PR-158, 1996. Imagem disponível no site Sebastião Salgado.

Cláudia Jaguaribe, Mariana e amiga, 2010. Imagem disponível no site de Claudia Jaguaribe.

Fábio Baroli, Sem título, série “Vendeta”, óleo sobre tela, 2010. Imagem disponível no site Prêmio Pipa.

Bansky, Policeman Searching Girl, Londres, 2007. Imagem disponível no site de Bansky.

Como você se sentiu ao ver essas imagens? Comovido? Indignado? Incomodado? Indiferente? Imagina por que se sentiu assim?

Nossa reação diante de imagens como essas é uma manifestação do que historiadores da infância apontam como uma nova fronteira entre gerações traçada pelo moderno ocidental, configurando os lugares, os momentos, as informações e as atividades compreendidas como infantis. Nesse processo, o espaço público da rua, onde reuniões e decisões coletivas da vida em sociedade acontecem, passou a ser atribuído aos homens adultos, sendo o espaço doméstico da casa, onde se realizam as atividades de cuidado para a sobrevivência e as decisões individuais sobre a família, destinado a proteger as mulheres e as crianças. Paralelamente, surgiram as escolas, que se encarregaram da formação preparatória para a vida adulta, social e produtiva, separando as crianças das atividades laborais e de outros assuntos e vivências, como aqueles relacionados à violência e ao sexo.

E o que esse processo tem nos ensinado?

As suas consequências são tão extensas e complexas que não caberiam neste curso. Porém, para atingir os nossos objetivos, basta observarmos que a escola e a casa são na atualidade os lugares onde as crianças passam a maior parte de seu tempo. Por isso, ficou naturalizado em nosso discurso que o espaço doméstico e as instituições educativas seriam os únicos espaços realmente infantis, enquanto a rua seria um lugar inadequado para quem ainda não tem idade suficiente para circular desacompanhado. Com isso, as atividades infantis, que antes aconteciam ao ar livre, em grupos de diferentes idades e longe do olhar adulto, se tornaram mais supervisionadas, sendo o contato entre os pares reduzido a relações entre crianças agrupadas por idade em instituições escolares ou sociais.

6

Especialistas e ativistas têm alertado para as inúmeras, diversas e graves consequências decorrentes dessa situação. Mas, neste curso, gostaríamos de chamar atenção para um aspecto para o qual pouco destaque é dado: o fato de que a ausência de meninos e meninas no espaço público produz a invisibilidade social das crianças. Nem eleitoras, nem contribuintes, as crianças foram – e continuam sendo – privadas do direito à participação social e política, o que muitas vezes impede que instituições, governantes e agentes sociais levem em consideração os impactos que as decisões políticas podem ter sobre suas vidas.

7

Qual a primeira coisa que lhe vem à cabeça quando você pensa em participação social e política? Eleições? Pois bem, no senso comum, a participação social e política é imaginada como algo a se realizar na vida adulta, sendo necessária uma longa preparação até que esse direito seja adquirido. Você pode estar pensando, “Ah, mas, é claro, as crianças não podem votar”, e não vamos aqui refutar esse argumento. Mas o que estamos propondo é que a cidadania não seja associada exclusivamente ao exercício do voto. Ao contrário, convidamos você a imaginar diversas formas possíveis de participação das crianças, como o direito ao acesso às informações que lhes dizem respeito, o direito à organização coletiva e, até mesmo, à mobilização para pressionar as autoridades na defesa de seus interesses.

Veja a seguir algumas experiências interessantes de exercício da cidadania na infância:

8

Carta de um menino negro da Escola Integrada à sua professora. Acervo pessoal de Mara Evaristo, 2022.

11

O que pensa sobre esses exemplos?

Conhece outras iniciativas assim?

Infelizmente, as manifestações sociais e políticas das crianças são menos frequentes do que gostaríamos, já que, como vimos, a ausência delas no espaço social torna a infância socialmente invisível. Como se não bastasse, a institucionalização da infância (alguns autores vão falar de domesticação, confinamento, emparedamento) também está relacionada à expectativa de determinados padrões que cada criança deve corresponder. O problema é que esse papel social foi universalizado a partir da experiência das crianças de famílias de camadas sociais superiores de países europeus e norte-americanos, e foi estendido como modelo universal de infância a ser reproduzido em contextos muito diversos, como na Ásia, África e América Latina – incluindo o Brasil –, sem que se levasse em conta a diversidade de formas de se viver a infância, ou, melhor seria até dizer, as infâncias.

Para ilustrar essa ideia, dê uma olhada no Disque Quilombola, vídeo que traz um diálogo divertido entre crianças de uma comunidade quilombola e de um morro no estado do Espírito Santo. Através de um telefone de lata, elas falam sobre práticas culturais que exemplificam a singularidade de sua infância. Você consegue identificar algumas dessas práticas?

12

MATERIAL
BÁSICO

play
linha

Disque quilombola

Vídeo disponível no canal do YouTube da Equipe Disque, 2016.

linha

Circular pelas ruas, dançar funk ou brincar com fogo são atividades que não fazem parte da chamada infância hegemônica e podem ser consideradas erradas. Sobre a recusa da pluralidade das formas de viver das crianças ao redor do mundo, ouça o que diz a antropóloga Clarice Cohn:

13

MATERIAL
BÁSICO

play
linha

Trecho de Na Íntegra - Clarice Cohn e Mary Del Priori - Infância

Vídeo disponível originalmente no canal do YouTube da UNIVESP, 2016.

linha

A fala de Clarice Cohn nos mostra que aquilo que geralmente consideramos infância – ou seja, o período da vida para brincar, estudar e ser protegido do mundo considerado adulto – não corresponde às formas de vida de todas as crianças. Aliás, sobre meninos e meninas que vivem outras infâncias, costuma-se dizer que são crianças “sem infância”. Essa afirmação, ainda que preocupada com a violação de direitos, nega a riqueza e a complexidade das experiências infantis. Não é porque essas crianças não correspondem a uma imagem idealizada que podemos dizer que elas não têm infância.

14

A situação fica ainda mais grave quando observamos que essa diversidade muitas vezes se converte em desigualdades. Segundo o relatório da Fundação Abrinq, o Brasil, país de dimensão continental, tem 69,8 milhões de crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos de idade, o que representa 33% da população do país. É importante ressaltar que as condições em que essas crianças vivem não são apenas diversas, mas também extremamente desiguais. Os dados revelam que, entre julho e novembro de 2020, 45,4% de crianças entre 0 a 14 anos viviam em famílias em situação de pobreza, 4,6% da população nessa faixa etária (1.768.476 milhão de crianças) estavam em situação de trabalho infantil e 1,6 milhão de crianças e adolescentes de até 17 anos afirmaram não estar na escola.

Infelizmente esses dados não são isolados, mas refletem a realidade da América Latina. Apesar da significativa redução da pobreza experimentada na região a partir do século XXI, em 2016, a cada 100 crianças com menos de 15 anos, 47 viviam em situação de pobreza, sendo que 17 delas se encontravam em situação de pobreza extrema, como mostra um estudo realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Embora as desigualdades que recaem sobre a infância brasileira sejam históricas e persistentes, diversas pesquisas têm apontado para o agravamento da situação durante a pandemia, sendo identificados: o aumento nas taxas de abandono escolar, o recuo nas matrículas em creches, a estagnação da taxa de mortalidade (que vinha decrescendo), o crescimento do número de crianças abaixo de 5 anos desnutridas e das taxas de notificação de violência doméstica e sexual, além da diminuição da cobertura vacinal obrigatória de crianças. Em comum, esses estudos trazem a constatação de que a situação é ainda mais grave para crianças brasileiras moradoras de áreas rurais, pobres, negras ou deficientes.

15

E esse contexto de desigualdades não para por aí. Segundo o estudo Pobreza Infantil Monetária no Brasil – Impactos da pandemia na renda de famílias com crianças e adolescentes, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) neste ano (2022), a pobreza monetária e a pobreza monetária extrema impactam, proporcionalmente, o dobro de crianças e adolescentes, em comparação com os adultos. A pesquisa aponta também que meninas e meninos pretos, pardos e indígenas que vivem nas regiões Norte e Nordeste são mais afetados pela insuficiência de renda, em comparação com brancos das demais regiões do País, chegando a pobreza monetária infantil a dobrar no primeiro grupo em relação ao segundo. Esses dados são preocupantes porque a pobreza e as múltiplas privações (à educação, saúde, informação, água, saneamento e moradia) durante a infância dificultam a interrupção do ciclo de pobreza entre gerações, contribuindo para a reprodução estrutural das desigualdades na sociedade no Brasil.

16

17

Por isso, a construção de políticas públicas que tenham por objetivo garantir os direitos das crianças é mais justa e eficiente quando reconhece a diversidade cultural e as desigualdades sociais (econômicas, culturais, raciais, de gênero, etc.) que marcam o contexto brasileiro. Sobre esse tema, ouça a fala de Maria de Salete Silva, especialista em Políticas Públicas para a Infância:


MATERIAL
BÁSICO

play
linha

Desafios para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

Vídeo disponível no canal do Instituto Arcor Brasil no YouTube, 2021.

linha

18


2. Direitos das crianças: o marco legal

A infância não foi inventada em uma data específica, nem por uma pessoa só. A construção da ideia de infância, como pensamos hoje, foi uma obra coletiva de adultos e crianças que começou há séculos atrás, sofreu avanços e recuos e, claro, ainda não terminou. Um dos desdobramentos desse percurso foi o reconhecimento da criança como um sujeito de direitos, processo que implicou no surgimento de uma série de marcos legais, dentre os quais se destaca a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989. Isso não significa que os direitos das crianças tenham surgido com esse documento. Na verdade, eles são fruto de um intenso debate que antecedeu a sua aprovação e de conquistas que marcam esse percurso histórico.

Curiosidade:

Conheça a legislação anterior à Convenção de 1989.

A Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924, é considerada a primeira menção, registrada em instrumento internacional, à necessidade da infância e da adolescência contarem com tratamento diferenciado por parte dos adultos. Alguns anos depois, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 destacou a necessidade de que todas as crianças e suas mães recebam cuidados e assistência especial. Em 1959, a Declaração Universal dos Direitos da Criança forneceu as bases doutrinárias da Convenção aprovada três décadas depois, em 1989.

19

Apesar de a Convenção de 1989 não inaugurar essa ideia de criança como sujeito de direitos, ela inovou, em relação aos documentos antecedentes, por sua extensão, por sua pretensão de abarcar diversas dimensões da vida infantil e por reconhecer às pessoas menores de 18 anos todos os direitos e liberdades inscritos na Declaração dos Direitos Humanos. Vale lembrar que, na maior parte dos documentos anteriores, as crianças e os adolescentes eram reduzidos a objeto de proteção, que precisavam ser tutelados pelos adultos, principalmente pelos pais. Isso porque os “menores”, como frequentemente eram chamados, eram considerados responsabilidade de suas famílias, cabendo aos governos apenas intervenções pontuais. Não se pensava ainda em exigir do estado a formulação de políticas voltadas à garantia do bem-estar e do pleno desenvolvimento desse grupo etário, nem na possibilidade de atribuir às crianças também o direito de participação.

20

Buscando contribuir com a assimilação da Convenção sobre os Direitos das Crianças (CDC), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) agrupou os direitos garantidos pela Convenção em três categorias:

(1) Direitos à provisão: Reúne os direitos relativos aos recursos necessários para se garantir o desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social adequado, incluindo os direitos à alimentação, vestuário, moradia e saneamento básico (arts. 24 a 27), o direito à educação, através do estabelecimento da obrigatoriedade do primário e da acessibilidade dos níveis seguintes, do estímulo à frequência e do combate à evasão escolar (art. 28), além do direito à cultura e lazer, vivenciados de forma participativa (art. 31).

(2) Direitos à proteção: Diz respeito à especificidade da criança como sujeito em desenvolvimento e aos direitos à proteção (art. 3) contra todo o tipo de maus tratos, abandono, exploração e crueldade (arts. 19 e 20), incluindo o direito à proteção contra a exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa interferir em seu desenvolvimento (art. 32), contra a exploração sexual (art. 34) e contra os abusos do sistema de justiça criminal (arts. 37, 38, 39 e 40).

(3) Direitos à participação: São aqueles que garantem às crianças e aos adolescentes o direito à liberdade de expressão, de manifestar sua opinião sobre questões que afetam suas vidas (art. 12 e 13 da CDC), fazendo isso de forma individual, mas também de forma coletiva e organizada (art. 15). Sobre o direito à participação, que é um dos pontos em que a Convenção dos Direitos da Criança de 1989 avança em relação aos marcos anteriores, falaremos mais nos módulos seguintes.

21

22

Além de contemplar esses três grupos de direitos, as políticas públicas dos países signatários da Convenção de 1989 devem ser regidas por princípios que foram estabelecidos no Comentário Geral nº 5 do Comitê dos Direitos da Criança (2003). Dentre esses princípios, vale a pena mencionar ao menos dois:

(1) Princípio da não discriminação:
Estabelece que todos os direitos devem ser garantidos, independentemente de gênero, raça, etnia, idioma, religião, posição econômica, opinião política ou nacionalidade. Esse princípio se faz especialmente relevante no contexto brasileiro, em que a negação do acesso aos direitos das crianças atende a critérios étnico-raciais, de classe social, de gênero e dizem respeito a uma geografia social específica.

(2) Princípio do melhor interesse (ou interesse superior da criança):
Determina que os Estados Nacionais devem conceder prioridade à infância e à adolescência na formulação de normas e políticas públicas, na qualidade dos programas e serviços e no direcionamento de recursos públicos. Além de fundamentar as políticas públicas, essa perspectiva deve nortear também a atividade de tribunais, órgãos administrativos e legislativos, e até mesmo as instituições privadas que atuam prestando algum tipo de serviço a crianças e jovens. Isso porque considera-se que as privações de direitos sofridas pelas crianças, consideradas pessoas em desenvolvimento e vulneráveis biopsiquicamente, trazem consequências para a vida toda.

23

Quando um país se torna signatário da Convenção, ele automaticamente assume algumas responsabilidades, como a de atualizar seu marco legal contemplando esses direitos e princípios, investir em políticas públicas correspondentes e destinar recursos orçamentários para esses programas e ações. A Convenção é o documento de direitos humanos mais ratificado do mundo e desencadeou a revisão das legislações nacionais dos mais de 190 países signatários.

Curiosidade:

Os Estados Unidos foram o único país do mundo a assinar, mas não ratificar a Convenção.

A América Latina e o Caribe foram pioneiros na ratificação da Convenção, tendo esse momento coincidido, em vários países da região, com a redemocratização pós-ditaduras militares. Mais de 20 anos depois da aprovação do documento pela Assembleia Geral da ONU, quase todos os países da América Latina revisaram suas normas, incluindo nelas os direitos das crianças. A exceção é o Chile, que, apesar de ter assinado a Convenção, só agora (em 2022) está atualizando a sua Constituição para inserir novos direitos sociais, uma vez que a carta do país remonta ainda à ditadura de Pinochet.

24

25

O Brasil foi o primeiro país da região a adaptar a legislação nacional aos preceitos da Convenção de 1989, processo que ocorreu em meio à redemocratização e à elaboração da Constituição Cidadã. Sobre isso, assista ao curta-metragem A história, as lutas e a evolução dos direitos das crianças:

MATERIAL
BÁSICO

play
linha

A história, as lutas e a evolução dos direitos das crianças.

Vídeo disponível no canal no YouTube do Portal Lunetas, 2018.

linha

Como mostra o vídeo, a atualização da legislação brasileira à Convenção de 1989 ocorreu através da inclusão dos artigos 227 e 228 na Constituição de 1988 e através da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/Lei nº 8.069/90). Esse movimento representou um importante avanço, uma vez que nas normas anteriores – como o Código Mello Mattos (1927) e o Código de Menores (1979) – as crianças só eram mencionadas na condição de infratores. Isso acontecia porque, na ausência de políticas adequadas do estado brasileiro para a situação das crianças pobres, principalmente dos meninos e meninas de rua, essas leis apontavam como solução o controle social dos filhos de famílias desfavorecidas.

A percepção das crianças pobres e negras como um problema a ser resolvido através de um aparato repressivo não aconteceu por acaso ou coincidência, mas está associada ao processo histórico de formação da nossa sociedade, marcado pelo genocídio dos povos indígenas e pelo tráfico e escravização de africanos. Na sociedade imperial, por exemplo, crianças indígenas e negras experimentaram a violência da separação de seus familiares em processos forçados de evangelização e exploração do trabalho, permeados por castigos e humilhações.

26

A Lei do Ventre Livre, de 1871, estabeleceu que as mulheres escravizadas dariam à luz apenas a bebês livres. Contudo, ela não foi acompanhada por uma política que permitisse a essas crianças o acesso à saúde, ao lazer e à educação, nem tampouco à participação na vida política, culminando no abandono de milhares de crianças. Por essa razão, a data de abolição da escravatura, em 1888, é considerada por alguns estudiosos como o início de uma nova forma de desproteção da juventude negra. O arcabouço jurídico construído após a proclamação da República levou à criminalização e institucionalização de crianças e adolescentes brasileiros, consolidando, assim, uma política de controle e repressão do estado que permeia até os dias de hoje. Por tudo isso, podemos dizer que a construção do marco legal brasileiro referente às crianças é fortemente atravessada pelas relações étnico-raciais.

27

Sobre a influência do passado colonial nas leis brasileiras que tratavam das crianças e dos adolescentes e a reviravolta legislativa que ocorreu após a redemocratização, assista a seguir à reportagem de Ricardo Westin.

28

MATERIAL
BÁSICO

play
linha

Em 1927, o Brasil fixava a maioridade penal em 18 anos.

Vídeo disponível no canal do YouTube do Senado Federal, 2015.

linha

A substituição do modelo assistencialista-correcional-repressivo por uma visão sistêmica da infância nas normas brasileiras não foi automática, mas fruto da articulação e mobilização da sociedade civil nos anos que antecederam a redemocratização. Destacam-se nesse processo a criação, em 1985, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança, formada principalmente por agentes municipalistas. Também foram determinantes o Movimento da Criança Constituinte e a Campanha “Não matem nossas crianças”, resultado da mobilização do movimento negro.

29

Dois episódios marcaram esse momento, sensibilizando a opinião pública, a imprensa e os parlamentares:

(1) A Ciranda da Constituinte, quando mais de 20 mil crianças e adolescentes cercaram o Congresso Nacional, em 5 de outubro de 1985, data em que seria votada a inclusão dos artigos 227 e 228 na Constituição.

Manifestação organizada pelo Movimento Nacional Meninos e Meninas de Ruas (MNMMR) em frente ao Congresso Nacional.
Foto de Reynaldo Stavale, disponível no site da Câmara dos Deputados.

30

(2)Os Encontros Nacionais de Meninos e Meninas de Rua, que fomentaram a organização das crianças em situação de rua para a defesa de seus direitos e foram determinantes para a promulgação do ECA. Assista a trechos do documentário Crianças abandonadas – II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Brasília, 1989:

MATERIAL
BÁSICO

play
linha

Trecho de Crianças Abandonadas - II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua / Brasília 1989.

Vídeo disponível originalmente no canal do YouTube de Eduardo Mota, 2014.

linha

Assim, o ECA representou uma vitória para as crianças e adolescentes brasileiros, sobretudo para os pobres e negros que vinham sofrendo com a repressão policial. Dentre as conquistas expressas no estatuto, ressaltamos a instituição da inimputabilidade penal de crianças e jovens menores de 18 anos e a previsão da criação de órgãos do sistema de garantia de direitos da criança no Brasil, que têm por função acompanhar e efetivar as políticas para a infância, como:

31

(1) Conselhos Tutelares: Constituídos por membros eleitos da sociedade civil, são encarregados de acompanhar e eventualmente encaminhar à rede de proteção casos de crianças e adolescentes em privação de direitos ou em conflito com a lei.

(2) Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente: Constituídos por representantes do poder público, da sociedade civil e do terceiro setor (que inclui iniciativas privadas de utilidade pública), são responsáveis pela fiscalização do cumprimento dos direitos estabelecidos no ECA.

Junto aos artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988, o ECA consolidou a substituição da doutrina da situação irregular pela doutrina da proteção integral, atribuindo às crianças não apenas os direitos fundamentais conferidos a todos os cidadãos, mas também aqueles direitos que dizem respeito às especificidades da infância. Mais de três décadas após essas importantes conquistas normativas, apesar dos inúmeros desafios que ainda persistem, o Brasil observa a diminuição da taxa de mortalidade infantil, o avanço no acesso das crianças e adolescentes à educação, além da redução da exploração do trabalho infantil.

32

Na sua área de atuação, houve avanços no atendimento às crianças depois do ECA? Você conhece dados que confirmem esses avanços na realidade nacional e/ou local?

A consolidação de um novo entendimento dado pela promulgação do ECA abriu caminho para diversas iniciativas do poder público, do terceiro setor e da sociedade civil, como a criação, em 1996, do Programa Prefeito Amigo da Criança, implementado em mais de 1.370 municípios brasileiros. Promovido pela Fundação Abrinq, o programa tem o objetivo de apoiar tecnicamente os gestores municipais para que priorizem políticas públicas em favor das crianças e adolescentes.

Reconhecendo os benefícios individuais e coletivos do investimento na primeira infância, foi criada, em 2007, a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), articulação nacional de organizações da sociedade civil, do governo, do setor privado e de organizações multilaterais que atuam pela promoção e garantia dos direitos da Primeira Infância. Em 2010, a RNPI lançou o Plano Nacional da Primeira Infância (2010-2022), aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e acolhido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência.

33

Ainda de olho na primeira infância, em 2016, o Brasil aprovou o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), que tem por objetivo estabelecer princípios e diretrizes para as políticas públicas voltadas às crianças de 0 a 6 anos. Para evitar que os entes federativos empurrem as responsabilidades uns aos outros, o documento menciona a corresponsabilidade e a complementaridade das ações de Municípios, Estados (incluído o Distrito Federal) e da União, sendo do governo federal a responsabilidade de promover a articulação entre os demais níveis. Tanto o Plano Nacional da Primeira Infância quanto o Marco Legal da Primeira Infância recomendam que todos os Municípios brasileiros devem criar e implementar, até 2022, um Plano Municipal pela Primeira Infância (PMPI).

34

3. As políticas públicas para a infância

O Brasil, como já vimos, foi pioneiro na América do Sul na atualização das leis nacionais relativas aos direitos das crianças, além de ter produzido, com participação da sociedade civil, uma legislação avançada no reconhecimento dos direitos da criança. Contudo, observa-se uma grande distância entre os direitos reconhecidos e a realidade em que vivem os meninos e as meninas no país.

No seu trabalho, você observa desafios impostos à aplicação dos direitos reconhecidos pelo ECA?

Esses problemas mostram que o reconhecimento legal não basta para garantir a efetiva vigência das normas e a mudança da realidade. É necessário desenhar políticas públicas para a infância, configurando programas, ações e serviços voltados para viabilizar os direitos desse grupo etário.

Na publicação Hacia la garantía efectiva de los derechos de niñas, niños y adolescentes: Sistemas Nacionales de Protección, a Comisión Interamericana de Derechos Humanos/ Organización de los Estados Americanos (CIDH/OEA) categorizou as políticas públicas da América Latina em quatro grupos, com foco nos direitos da infância e da adolescência:

35

(1) Políticas sociais básicas ou universais: São voltadas para crianças e adolescentes em geral, como é o caso das políticas da educação e da saúde. No Brasil, são exemplos: o Calendário Nacional de Vacinação, que oferece quase 20 vacinas destinadas exclusivamente às crianças; o ProInfância, que tem por objetivo aumentar o número de creches para o atendimento das crianças de 0 a 5 anos; o Programa Nacional de Alimentação Escolar (2009); o Programa de Saúde Integral a Criança (2004); o Programa Saúde na Escola (2007), o Programa Brasil Carinhoso (2012), entre outros.

36

(2) Políticas de desenvolvimento social (ou de assistência): São direcionadas para famílias ou crianças que necessitam de apoio para superar vulnerabilidades ou condições de exclusão e desigualdade. São exemplos os programas de transferência de renda com condicionalidades, como o Auxílio Brasil, substituto do bem-sucedido Bolsa Família, que vigorou por 18 anos no país, o Asignação Universal por Hijo para Protección Social (Argentina) e o Ingreso Ético Familiar (Chile).

(3) Políticas de proteção especial: São focadas em crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco ou de violação de direitos, incluindo aqui as medidas contra todas as formas de violência e contra o trabalho infantil. São exemplos brasileiros o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (1996) e o Programa de Proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte (2003).

37

(4) Políticas de defesa jurídica, exigibilidade de direitos e garantia de direitos no marco dos procedimentos administrativos e judiciais: São incluídas aqui as ações destinadas a garantir uma justiça adaptada a crianças e adolescentes. No Brasil, destaca-se a criação, em algumas cidades, de Centros de Atendimento Integrado, que garantem um fluxo único e específico às crianças vítimas de violências e possuem profissionais capacitados para realizar ações de cuidado e de escuta da criança e do adolescente sobre os fatos ocorridos.

Algumas dessas políticas, como o Programa Brasil Carinhoso (2012) e o Fomento à Agricultura Familiar, articulado ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (2009), são intersetoriais, ou seja, articulam mais de um setor. Além de mais eficientes, as políticas intersetoriais respondem a uma concepção holística da criança, superando a fragmentação dos conhecimentos e a desarticulação de instituições e agentes sociais para potencializar recursos, ações e resultados. Outras políticas foram desenhadas de modo a envolver diferentes entes federativos, e a própria sociedade civil, configurando um modelo de governança democrático e multinível. Aqui, vale destacar o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), criado, em 2006, para buscar a integração de atores sociais, instâncias públicas governamentais ou da sociedade civil que atuam para garantir os direitos humanos de crianças e adolescentes em todo o território brasileiro.

38

A desarticulação entre atores, instituições e níveis de governo não é um problema exclusivo do Brasil, mas compartilhado por outros países latino-americanos, já que, historicamente, as políticas de assistência social e educação se desenvolveram na região separadamente. Para evitar leis e instituições duplicadas, além de iniciativas institucionais fragmentadas, os governos latino-americanos têm investido na criação de políticas suprainstitucionais, buscando maior sinergia das ações. São exemplos o programa de Cero a Siempre na Colômbia, o Chile Crece Contigo, a Estratégia Nacional Intersetorial para a Primeira Infância: Infância Plena no Equador, o Programa Uruguay Crece Contigo e o Sistema rector nacional para la protección integral de niños, niñas y adolescentes na Venezuela. (O tema da intersetorialidade será tratado de forma mais aprofundada no módulo 4.)

Além da articulação dos diversos setores e níveis governamentais, o Brasil, país de dimensão continental, também enfrenta os desafios decorrentes da desigualdade social que o caracteriza e da diversidade étnico-racial, de gênero e religiosa de suas crianças. Mesmo contando com um arcabouço legal robusto e atualizado no que diz respeito aos direitos das crianças, e ainda que esses direitos sejam sustentados pelo princípio da não discriminação, o país não está isento de aplicações discriminatórias de suas leis. Essa ideia parece contraditória, não é? Acontece que as decisões tomadas nas políticas públicas implicam em um certo grau de interpretação dessas normas. Sobre isso, ouça a fala de Assis de Oliveira no Seminário 30 anos ECA: da ação à ficção, realizado pelo NEPEI/FAE/UFMG em 2020.

39

40

MATERIAL
BÁSICO

play
linha

Trecho do Seminário 30 anos ECA: da ação à ficção.

Vídeo disponível originalmente no canal do YouTube do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil, 2020.

linha

Assis fala sobre um movimento conservador que instrumentaliza os novos direitos das crianças, paradoxalmente negando-os quando são afirmados. Isso acontece de três formas: 1) através da ação punitivista e violenta do estado contra crianças e adolescentes negros, periféricos e pobres, 2) através da deslegitimação da participação social e política de crianças e adolescentes, e 3) através de usos discriminatórios dos direitos das crianças contra a diversidade das infâncias. Sobre esse último ponto, Assis defende que a doutrina da proteção integral, baseada em um modelo de infância universalizado, seria insuficiente para garantir a proteção de todos os meninos e meninas, sendo necessário complementá-la com a doutrina da proteção plural. Isso implicaria na reestruturação de toda a rede de proteção para garantir a representatividade nos ambientes de decisão e atendimento, disponibilizando profissionais e protocolos que considerem a diversidade de infâncias.

Por fim, vale lembrar que a efetivação dos direitos das crianças, cujas políticas possuem forte apelo eleitoreiro, também enfrenta o desafio de superar a cultura da descontinuidade das políticas públicas do país. Um exemplo é a substituição do Bolsa Família, maior programa condicionado de transferência de renda do mundo, pelo Auxílio Brasil. Sobre esse tema, não deixe de ler abaixo a entrevista com Rogério Veiga, realizada pelo projeto Criança Livre de Trabalho Infantil. Especialista em políticas públicas, Veiga trabalhou no Ministério da Educação, entre 2009 a 2011, e participou da equipe de formulação e implementação do programa São Paulo Carinhosa, voltado para políticas de primeira infância da cidade de São Paulo.

O que muda no “novo Bolsa Família” para os direitos de crianças e adolescentes.
Reportagem de Bruna Ribeiro. Criança Livre de Trabalho Infantil, 27 set. 2021.

41

4. O direito das crianças à cidade

Como vimos anteriormente, a consolidação de uma concepção universal de infância pautada pelo mundo moderno ocidental estabeleceu o espaço público como lugar dos homens adultos, reservando o espaço doméstico às mulheres e às crianças. De certo modo, o domínio do espaço se tornou um marcador geracional a autonomia do deslocamento e o gradativo aumento do perímetro de circulação poderiam até mesmo indicar a idade de uma pessoa.

42

Essa diminuição da sociabilidade das crianças nos espaços públicos faz parte de um processo relacionado a uma concepção individualista de cidade, que priorizou o deslocamento por carros, alargando progressivamente as ruas, reduzindo as calçadas e tornando as cidades mais perigosas para os pedestres, principalmente os de pouca idade. Para se ter uma ideia, o trânsito é a principal causa de mortes de crianças de 1 a 14 anos no Brasil, segundo o site Criança Segura. Por isso, o espaço urbano não deve ser pensado como um lugar neutro, pois ele expressa e configura relações de poder, obedecendo a uma lógica masculina e elitista, e claro, adultocêntrica.

43

Os dados a seguir ilustram bem essa ideia. Se pensarmos sobre a violência de uma forma geral, e não apenas na violência no trânsito, percebemos como a segurança urbana é desigualmente distribuída. Segundo o Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, realizado pela Unicef, meninos brasileiros entre 10 e 14 anos vivem uma transição da violência doméstica para a prevalência de mortes fora de casa, causadas por arma de fogo e com autor desconhecido. Essas mortes violentas possuem um alvo específico: meninos negros representam quatro em cada cinco vítimas entre 15 e 19 anos, faixa etária em que ocorre a maior parte das mortes.

44

E essa situação está se agravando. Entre 2016 e 2020, o número anual de mortes violentas de crianças com idade entre 0 e 4 anos aumentou 27%. Somente em 2020 foram identificadas 787 mortes de crianças e adolescentes entre 10 a 19 anos como decorrentes de intervenção policial, indicando uma média de mais de duas mortes por dia no país. Esses dados evidenciam a centralidade da questão racial no debate sobre o direito das crianças e adolescentes brasileiros à cidade.

45

A noção do direito à cidade foi formulada pelo filósofo francês Henri Lefebvre e tem sido amplamente adotada por quem pensa, trabalha e luta por um espaço urbano mais democrático e inclusivo. Essa ideia emerge das diferentes formas de opressão da vida cotidiana no contexto urbano e expressa o desejo por uma nova forma de construir a cidade e viver nela. Já imaginou, outras formas de morar, trabalhar, festejar e brincar nas cidades?

O direito à cidade implica na participação de todos os sujeitos na construção e fruição do espaço. Foi o pedagogo italiano Francesco Tonucci quem contribuiu para dar visibilidade às crianças nessa construção coletiva, trazendo a importância da participação infantil no debate público sobre o planejamento urbano a partir do projeto Cidade das Crianças. Essa discussão teve seus desdobramentos na legislação brasileira, como mostram as falas das urbanistas Tainá de Paula e Irene Quintàns.

46

MATERIAL
BÁSICO

play
linha

Marcos e Leis.

Disponível no canal do YouTube do Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP), 2019.

linha

Como vimos até aqui, o século XX construiu um grande arcabouço teórico e jurídico para as crianças, mas os direitos das crianças, no Brasil como na maior parte dos países do mundo, ainda não estão garantidos. Para que isso aconteça, é cada vez mais necessário que a sociedade civil e os governos revertam a invisibilidade social da infância nas políticas públicas, nos orçamentos, nas estatísticas, nos programas e nas ações, para que sejam garantidos os direitos sociais de todas as crianças, indiscriminadamente.

47

No Brasil e na América Latina, veremos que a escola, enquanto equipamento público de larga capilaridade na malha urbana, assume centralidade na conexão entre estado, políticas públicas, sujeitos e territórios. Nos módulos seguintes, traremos outros conceitos, além de exemplos inspiradores de iniciativas que levam em conta as crianças que, como nós, também desejam uma outra cidade.

48

Gostou do assunto e quer saber mais?

Veja abaixo um conjunto de exemplos de políticas intersetoriais para a infância na América Latina:

Chile: Chile Crece Contigo
Colômbia: Cero a Siempre
Equador: Estratégia Nacional Intersetorial para a Primeira Infância: Infância Plena
Uruguai: Programa Uruguay Crece Contigo
Venezuela: Sistema rector nacional para la protección integral de niños, niñas y adolescentes

play
PODCAST

No quarto episódio do podcast “A Criança e a Cidade”, Ana Estela Haddad conta sobre o São Paulo Carinhosa, programa que articula 14 secretarias municipais para promover políticas direcionadas à primeira infância, priorizando ações dirigidas a territórios vulneráveis para resgatar a cidadania de crianças e suas famílias.

49

SITE

O site do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana traz excelente material sobre o que é prioridade absoluta, matérias de jornais, notícias e uma seção com publicações sobre o tema.

play
VÍDEO

O canal do Luan Manzo, menino quilombola de seis anos, apresenta uma série de vídeos produzidos por ele no Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, localizado próximo ao bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte. Nos seus vídeos, ele conta sobre a cultura afro-brasileira e os mistérios das religiões de matriz africana. O curta-metragem Olhos de Erê, produzido por Luan, já foi reproduzido em diversos festivais e, em junho de 2022, venceu o primeiro lugar no 6º Prêmio BDMG Cultural.

50

CINEMA

Viver (Ikiru), (1952)

Dirigido por Akira Kurosawa, o filme recebeu o Lobo de Ouro no Festival de Cinema de Bucareste, em 1953, e o Prêmio Especial do Senado de Berlim no Festival de Berlim, em 1954. Ikiru conta a história de um grupo de mulheres que busca transformar um terreno baldio poluído em um parque para seus filhos brincarem. Mas o que essas mães vivenciam é um outro tipo de jogo, o jogo de empurra da administração pública: a solicitação é encaminhada de um setor para outro do governo, com justificativas ou desculpas que parecem não ter fim, até que um homem, lidando com a própria morte, toma o problema em suas mãos.

51

Crianças Invisíveis (2014)

Esse projeto, dirigido por Kátia Lund, Spike Lee, Emir Kusturica, John Woo, Mehdi Charef, Stefano Veneruso, Ridley Scott, Jordan Scott, reúne cineastas de diferentes países para trabalhar solidária e gratuitamente. O resultado são sete curtas-metragens sobre infâncias invisibilizadas em diferentes regiões do mundo e contextos sociais. O episódio brasileiro, dirigido por Kátia Lund, mostra a rotina dos irmãos João e Bilu, catadores de latinhas, que transitam pela cidade e enfrentam inúmeros perigos e obstáculos com inventividade, humor e uma perspectiva genuinamente infantil.

52

Você pode baixar o PDF interativo deste módulo.

Se você for ler o conteúdo em telas pequenas (celulares e tablets), clique aqui.
Se você for ler o conteúdo em telas maiores ou deseja imprimir o material em folhas A4,clique aqui.

Referências bibliográficas

Módulo 2: A criança e a cidade

cliquelaranja
seta

O que você vai ver aqui?

Neste módulo vamos analisar, a partir de experiências concretas, como as relações entre as crianças e as cidades acontecem em um mundo desigual e diverso.

As perguntas orientadoras deste módulo são:

  • Como pensar diversidade e desigualdade na infância das cidades?
  • Onde estão as crianças nas cidades?
  • Por onde e como as crianças circulam nas cidades?

1.Introdução

Bem, vamos aqui pensar juntos sobre a relação entre a criança e a cidade. Relembre sua infância. Como você vivia e experimentava a cidade? Lembra-se da excitação em ir até o centro, acompanhando os pais, amigos ou irmãos mais velhos, olhando os prédios, as lojas, as pessoas tão diferentes que passavam? Lembra-se da primeira vez em que saiu sozinha pela cidade?

Estas lembranças nos dizem como a experiência das crianças com o ambiente urbano é fundamental para seu desenvolvimento integral. A cidade não é apenas um espaço de moradia, mas um espaço educativo através do qual desenvolvemos olhares, sensibilidades, nos abrimos para a diversidade, ao mesmo tempo em que nos afetamos pela desigualdade que caracteriza nosso mundo social.

A intenção, neste curso, é que possamos refletir sobre mecanismos que nos possibilitem compreender melhor como analisar e desenvolver políticas que pensem a relação entre a criança e a cidade. Vivemos em um mundo 57% urbano, cuja previsão é de que, em 2050, chegue a 70% da população mundial morando em cidades (Banco Mundial, 2021). A América Latina é a região do mundo com maior população urbana (81%) e também a mais desigual.

4

Curiosidade:

No Brasil, foram identificados 13.151 aglomerados subnormais, dentro dos quais existem mais de 5 milhões de domicílios, que representam o 7,8% do total nacional. Os aglomerados subnormais ou favelas, são assentamentos onde residem populações com condições econômicas e de habitação precárias, onde geralmente não tem posse da terra, e possuem grandes problemas urbanísticos, de infraestrutura e serviços básicos, muitos deles localizados sobre áreas de risco, susceptíveis a desastres ambientais (IBGE, 2020). O adjetivo “subnormal” utilizado pelo IBGE, inicialmente faz referência à ocupação ilegal do terreno onde se desenvolve o assentamento, mas o termo também possui uma carga simbólica forte ao ser de fato pejorativo, recaindo sobre as populações moradoras dessas áreas um estigma social de anomalia.


Embora a mancha urbana no Brasil represente 0,5% do território (MAPBIOMAS, 2021), 85% da população brasileira moram nas cidades (IBGE, 2016). Mas, de qual cidade estamos falando? Será que as crianças têm a mesma experiência em cidades grandes e pequenos vilarejos, e inclusive, será que crianças com maior ou menor renda se deslocam da mesma forma e frequentam os mesmos lugares?

5

2. Como pensar diversidade e desigualdade na infância das cidades?

A vivência do espaço urbano diferencia-se de acordo com a classe social, a idade, a raça e o gênero. No contexto brasileiro, as crianças pobres têm maior autonomia de circulação pela cidade, meninas tem menor acesso que meninos, meninos negros sofrem continua violência, ao serem criminalizados, independente de sua classe social. Como destaca Gevanilda Santos (2008), após a abolição da escravatura, a infância negra foi fortemente associada à ideia de delinquência e crianças e adolescentes negros passaram a ser criminalizados e associados à perturbação da ordem, da tranqüilidade e da segurança pública.

Quando recuperamos a história das cidades brasileiras, vê-se que seu crescimento foi relativamente recente e desordenado. Inicialmente, os grandes centros urbanos foram marcados pela exploração e o domínio colonial. Com o avanço da urbanização, em meados do século XX, o crescimento acelerado das cidades se concentrou nas áreas metropolitanas e houve uma rápida reprodução de assentamentos com condições precárias para grande parte da população. As aglomerações urbanas foram se consolidando à medida que mais pessoas saiam das áreas rurais para as urbanas, em busca de supostas melhores condições de vida e de trabalho, atraídos pelos novos pólos industriais brasileiros.

A histórica concentração de terras em nosso país somou-se ao descaso do Estado na criação de políticas públicas de moradia, saúde, educação e transporte para as populações vindas do campo. Diante deste contexto, a exploração da mão de obra barata pelos setores privados localizados nos centros urbanos tornou-se fator determinante para a grande desigualdade nas formas de habitar que predominam nas cidades brasileiras atualmente, resultando no que chamamos de segregação urbana. Vale lembrar que, no Brasil, a transformação das cidades foi marcada pela transição do modo de produção escravista para o modelo industrial, o que significou que a produção do espaço urbano refletiu na marginalização dos negros em tais assentamentos, uma vez que o processo de abolição não foi seguido de medidas de proteção social ou reparação à essa população (Sertorio, 2022; Santos, 2008). Assim, as favelas e os aglomerados refletem um processo de luta e resistência da população negra diante da ausência de garantia de acesso a direitos básicos pelo Estado.

6

7

Observe como nossa cidade reproduz, em sua geografia, a desigualdade e a segregação sócio racial brasileira. Onde surgiram e se concentram equipamentos públicos importantes, como as escolas e os hospitais? Recupere a história de implantação, no seu bairro, desde a primeira escola até o posto de saúde, passando pela chegada das linhas de ônibus. Observe as mudanças que aconteceram nas últimas décadas. As ruas privilegiam o carro ou os ônibus?

8

Histórias de Bairros em Belo Horizonte.

Projeto criado em 1999 pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e outras associações culturais que visa disponibilizar as histórias dos diversos bairros que compõem o município. O resultado do projeto supre uma demanda do público estudantil, cujo resultado foram cadernos didáticos voltados para crianças entre 9 e 11 anos que contam histórias da cidade.

As características da desigualdade no Brasil e na América Latina são estruturais e vão se agravando devido à concentração de renda e de poder das elites locais. Essa condição nos deixa mais vulneráveis considerando momentos de instabilidade da política nacional e os acontecimentos mundiais, como a própria pandemia do Covid-19.

Você se lembra de que, no início da pandemia, dizia-se que o vírus atingia indistintamente pobres e ricos? Na verdade, o acesso a direitos, num mundo cada vez mais desigual, ficou mais concentrado. Especialmente no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, a pandemia potencializou a desigualdade nas condições de vida e no acesso a direitos entre ricos e pobres, brancos, negros e indígenas. No caso das crianças e adolescentes, que constituem o grupo mais impactado por esse abismo social, a pandemia surtiu efeitos diretos no acesso e na permanência na escola, nos índices de violência doméstica e na desnutrição e insegurança alimentar.

9

Pensar as infâncias latino-americanas, é entendê-las na sua diversidade. Os contextos de pobreza e as condições de desigualdade, a degradação ambiental, a precariedade urbana, assim como as conquistas alcançadas através da mobilização popular, aproximam as experiências de países como Colômbia, Brasil e Argentina, entre outros, que inspiram uns aos outros. Mas essas realidades também apresentam muitas diferenças, de modo que buscar soluções iguais para contextos diferentes pode ser equivocado. Isso nos instiga a refletir sobre a cultura das crianças, suas relações familiares e sociais, para depois realizarmos propostas que se adequem melhor a suas realidades. Aí encontram-se perguntas diversas para se trabalhar com as crianças, por exemplo: como são seus bairros? De que as crianças brincam? Quais são suas maiores dificuldades?

E você? Quais problemáticas urbanas, específicas do seu bairro ou área de atuação, você observa que as crianças têm? Para se aprofundar sobre a questão da experiência das crianças das camadas populares latino americanas, indicamos esta entrevista com Patrícia Redondo, professora argentina:

10

Patrícia Redondo: “Eu tive que ficar sem fala para começar a falar com as infâncias populares a partir da minha própria experiência como educadora e como pesquisadora”: um olhar sobre as infâncias latino-americanas.

Entrevista realizada por Pâmela Cristina Santos e Joana Célia dos Passos. Revista Zero-a-Seis, v. 21, n. 40, 2019.

As palavras da professora Patrícia reafirmam a importância de se considerar a diversidade de infâncias que ocupam os territórios e em como atuar na melhoria dos espaços urbanos para e com as crianças. É importante construir práticas participativas das crianças, elaborando mecanismos de diálogo e escuta sobre a experiência urbana desses sujeitos e de sua visão de mundo. Mas como escutar as crianças?

11

Para tal, temos que ser sensíveis às formas de comunicação das crianças, as suas diferentes linguagens por meio das quais significam suas experiências. Tais linguagens se manifestam nas culturas infantis, em suas diferentes expressões, como a brincadeira, o desenho, a música e a imaginação. Através delas, as crianças nos dizem como veem o mundo e o espaço social que habita: as cidades, bairros e comunidades onde elas estão inseridas.

12

Vejamos alguns desenhos das crianças onde elas representam o espaço em que vivem. No primeiro desenho, o menino de 14 anos revela sua experiência do contexto da pandemia da Covid-19, em que as telas se destacam entre as atividades de lazer, a convivência familiar se apresenta como central para lidar com o isolamento social, e a preocupação com a contaminação e a manutenção da higiene em lavar as mãos para proteger-se emerge diante do contexto de crise sanitária.

No segundo, a criança destaca a aridez que contorna dois prédios na cidade divididos por uma área de estacionamento, revelando sua grandeza com as inúmeras janelas. No terceiro, as crianças revelam no desenho o contexto de fronteira entre uma ocupação urbana, onde o chão de terra é contornado por moradias de famílias em luta, e encontra-se com o asfalto, onde a cidade dominada por carros e prédios se apresenta. E no último, uma menina de 11 anos registra a diversidade cultural de sua comunidade, presente na música, na dança, nas brincadeiras, no trabalho e no alimento que a cerca.

13

Menino (14 anos), 2020.
Fonte: Arquivo do NEPEI, 2021.

Crianças da ocupação
Rosa Leão, 2019.
Fonte: BIZZOTTO, 2022.

Menina (11 anos), 1930.
Fonte: COUTINHO, 2019.

Kayo, 2020.
Fonte: EntrImagens, 2020.

Nesse sentido, propomos aqui, algumas perguntas disparadoras que nos ajudam a pensar essa relação das diferentes infâncias nos diversos tipos de cidades. Onde estão as crianças nas cidades? Para onde e como andam as crianças na cidade? Como as cidades podem ser também das crianças?

3. Onde estão as crianças nas cidades?

Vamos propor um exercício de tentar perceber as crianças nos espaços públicos. Que tal, no decorrer de seus deslocamentos pela cidade, você buscar observar: Onde estão as crianças? Como se deslocam? Com quem? Que crianças estão presentes nas ruas? Fazendo o que? Elas brincam ou conversam nas calçadas e praças?

As respostas a essas perguntas podem depender de muitos fatores. De forma generalizada, é comum acreditarmos que o lugar da criança é na escola, na casa, na creche, ou em outros espaços fechados e supervisionados onde a maioria delas passa grande parte do seu tempo.

Essa institucionalização da infância que vivemos atualmente, é chamada por alguns autores de vivência compartimentada da cidade, cesse “entre” espaços fechados, também é chamado de urbanismo de caixas ou cidade arquipélago. Esse é um fenômeno que aprofunda a invisibilidade das crianças e limita sua vivência espontânea nas nossas cidades. Assim, as crianças terminam segregadas em espaços especializados para elas.

15

Essa ideia de domesticidade da infância, contudo, não pode ser considerada universal, como demonstramos no primeiro módulo. Dependendo do contexto social, ela se configura a partir de outras relações espaciais. Exemplo disso é que, nas cidades, parte das crianças tem espaços de lazer restritos ao parquinho em espaços públicos ou privados, com brinquedos e aparelhos, muitas de vezes de função única e predeterminada, sem deixar espaços para que a imaginação das crianças complemente esses brinquedos. Outras crianças, como as que vivem em bairros populares, muitas vezes podem usufruir de quintais e ocupar as ruas ou lotes vagos com suas brincadeiras, mas têm o acesso muito limitado a espaços como museus e parques, quase sempre situados em áreas mais nobres da cidade que, por estarem situadas em locais mais centrais, encontram-se distante das regiões periféricas.

A casa ou o espaço doméstico onde as crianças moram encontra-se inserido em um contexto territorial: crianças e suas famílias – quando as têm - moram em ocupações, favelas, assentamentos, prédios, casas, condomínios fechados, bairros de classe média, bairros populares, vilas, quilombos urbanos, comunidades indígenas, instituições de acolhimento, e até, algumas, em situação de rua. Essas diversas condições mudam as relações das crianças com a rua e com a sua permanência ou perambulação pelos espaços públicos.

16

A própria configuração da moradia provoca um contato diferenciado com o espaço do entorno. Muitas vezes, as pequenas dimensões ou outras condições específicas das moradias populares em que residem crianças em favelas acabam por incentivar que o livre brincar seja realizado na rua, na quadra, nas calçadas e em outros espaços no entorno da moradia. A rua é, então, utilizada como extensão da casa, inclusive para as crianças brincarem e socializarem, e as fronteiras entre o espaço público e privado se deslocam.

17

Essa relação com a rua que as crianças dos bairros populares têm, de forma menos compartimentada que a das crianças de apartamentos ou de áreas da cidade mais planejadas, não é motivo de romantização. É importante destacar a ausência de equipamentos públicos (de lazer, cultura, educação e saúde) e de infraestrutura urbana (transporte, iluminação pública, espaços públicos, saneamento) nos territórios onde habitam as camadas populares, o que se traduz em condições desiguais para a vida social dessas comunidades e para a fruição das famílias desses espaços e serviços públicos. Essa ausência é resultado, dentre outras coisas, da forma como as cidades se desenvolvem no modo de produção capitalista, em que os investimentos se concentram nas regiões mais valorizadas e, portanto, mais nobres e centrais, onde o retorno financeiro é maior.

18

Por outro lado, as crianças das camadas médias e superiores pouco usufruem dos espaços da cidade, que não foram pensados para as crianças. O lazer se reduz aos espaços privados ou a praças, nem sempre voltadas para o brincar infantil, e os deslocamentos se dão a partir de carros que não promovem nenhuma interação com a cidade.

Pensando no cotidiano da criança, geralmente são as instituições de educação que retêm as crianças por um maior tempo em espaços fechados e supervisionadas, sendo em muitas escolas o acesso aos espaços livres bastante restrito. As experiências urbanas e com a natureza não podem ser apartadas. Crianças precisam de espaços livres onde possam correr, pular, cair. Precisam de subir em árvores e pisar na grama, entre outras importantes experiências sensório-motoras. Porém, muitas vezes, essas experiências são limitadas quando se substitui a grama e a areia dos parquinhos por materiais artificiais; as árvores por muros de escalada, retirando da criança toda a riqueza de exploração do ambiente natural.

Uma iniciativa que lembra a importância da relação das crianças com os espaços livres e com os elementos naturais é o movimento que advoga pelo desemparedamento da infância, conceito criado pela professora Lea Tiriba. Ela nos alerta para a importância de oferecer possibilidades para que as crianças se conectem com a natureza e com os espaços livres de forma rotineira. Veja no vídeo abaixo, como Lea Tiriba apresenta a importância de “desemparedar” as crianças na escola, permitindo que elas se relacionem com os elementos do mundo natural.

19

20

MATERIAL
BÁSICO

play

Inspirações | Desemparedar as crianças na escola.

Vídeo disponível no canal do YouTube do Instituto Alana, Programa Criança e Natureza, 2017.

Leia também a reportagem sobre o deslocamento das crianças na cidade do Recife. A reportagem, além de trazer entrevista a especialistas, apresenta pesquisas sobre a mobilidade urbana das crianças e de mães.

21

Futuro das cidades depende do deslocamento das crianças

Entrevista a especialistas e apresentação de pesquisas sobre a mobilidade urbana das crianças e de mães recifenses.

Reportagem de Alice Souza e Anamaria Nascimento, Diário de Pernambuco, 8 maio 2018.

Estar ao ar livre e experienciar a cidade é uma premissa fundamental para a Educação Integral das criançEstar ao ar livre e experienciar a cidade é uma premissa fundamental para a Educação Integral das crianças, que busca não privilegiar apenas a dimensão intelectual das crianças. Educar na e com a cidade é uma forma de viver suas dimensões cultural, social, física e emocional. Para mais informações sobre Educação Integral, escute o Podcast, com Jaqueline Moll, sobre os desdobramentos desse conceito no Brasil, especialmente a partir do Programa Mais Educação. as, que busca não privilegiar apenas a dimensão intelectual das crianças. Educar na e com a cidade é uma forma de viver suas dimensões cultural, social, física e emocional. Para mais informações sobre Educação Integral, escute o Podcast, com Jaqueline Moll, sobre os desdobramentos desse conceito no Brasil, especialmente a partir do Programa Mais Educação.

22

MATERIAL
COMPLEMENTAR

play

Episódio #47: Jaqueline Moll - A criança e a cidade, no Programa Edu Voices

A série “A criança e a cidade” do podcast Edu Voices convida a pedagoga Jaqueline Moll, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para falar sobre sua trajetória de pesquisa e a política de educação em tempo integral no Brasil.

Buscar maior vinculação das crianças com os seus territórios nos provoca, como adultos e adultas, a pensar no paradigma da proteção vs. autonomia das crianças, no qual, sem deixar de protegê-las, precisamos criar esses espaços físicos e sociais para que elas possam viver experiências que as deixem tomar decisões e tomar seu papel como agentes da sociedade.

Nesse sentido, a ludicidade, como princípio urbano, pode contribuir com a qualificação das relações das crianças com a cidade, assumindo o brincar como linguagem e como forma de perceber seu lugar no mundo. Pensar em cidades melhores para as crianças é pensar em cidades melhores para todas as pessoas, assim, apostamos, aqui, que as cidades possam se abrir para o lazer, para a convivência e para as aprendizagens coletivas. Quando pensamos nas cidades para crianças estamos também afirmando projetos de cidade em disputa. Como apontou Mayumi Lima, arquiteta e educadora, no seu livro A cidade e a criança: se existem calçadões e privilegia-se os pedestres quando se trata de um interesse comercial, porque não o fazer para atender ao interesse das crianças?

Trazer o potencial educativo e incorporar o lúdico nas cidades é romper a hegemonia das atividades produtivas sobre todas as outras que nos fazem humanos e nos permitem existir e reproduzir, rompendo também com a centralidade do transporte motorizado individual, o chamado carrocentrismo, imposto às nossas cidades.

O pedagogo italiano Francesco Tonucci propõe três inversões à forma de planejar as cidades, considerando a escala de cidade experimentada pelas crianças: sair da hegemonia do cidadão universal, homem, adulto (e, podemos acrescentar, branco) e incorporar a perspectiva das crianças; democratizar o espaço da cidade, cedendo o lugar dos carros aos pedestres, às bicicletas e ao transporte coletivo; e partir do bairro como uma célula urbana para construir as regras da cidade.


Isso significa, por exemplo, que uma estrada não passaria dentro do bairro, como acontece em várias cidades italianas. Ela deveria contorná-lo. “Mas então não será reta?”, perguntarão. “Não”. “Mas se não for reta, será menos veloz?”. “Sim, será menos veloz” (TONUCCI, 2016).


24

Leia a entrevista com o educador italiano Tonucci, em que ele explica melhor a proposta de uma cidade voltada para a infância, e assista ao minidocumentário produzido pela Maria Farinha Filmes (2021), em que especialistas de diferentes localidades no mundo falam sobre como os espaços urbanos podem ser mais acolhedores para as crianças.

Entrevista a Francesco Tonucci: a criança como paradigma de uma cidade para todos.



Entrevista realizada por Raiana Ribeiro. Educação e Território, 21 set. 2016.

MATERIAL
BÁSICO

play

O começa da vida 2 – Lá fora | Cidades e crianças: um lugar melhor para todos

Vídeo disponível no canal do YouTube da Maria Farinha Filmes, 2021.

Mas, no fim, de qual cidade estamos falando? Será que todos e todas vivenciamos o mesmo tipo de cidade? Será que ser menina ou menino, ser negro ou branco, morar na periferia ou num bairro central faz diferença nas experiências das crianças? Sim, faz diferença. Existem pesquisas em cidades brasileiras que revelam como diferentes marcadores sociais – principalmente gênero, raça e renda – podem influenciar nas atividades diárias, limitar o acesso aos espaços públicos – e aos tipos de espaços –, assim como a frequência aos espaços de cultura, entre outros elementos que negam o direito à cidade de muitas crianças brasileiras.

As relações de gênero também influenciam a forma como uma criança experimenta a vida na cidade. Vemos que meninos, negros e pobres são mais presentes desacompanhados na cidade, especialmente no contexto de crise contemporânea. Eles são também as vítimas mais frequentes de violência urbana, sendo constantemente criminalizados. No vídeo abaixo, vejam como Zianna Oliphant, uma menina negra de 9 anos, interrompeu uma assembleia na cidade de Charlotte, nos Estados Unidos, palco de violentos protestos por causa da morte de um homem negro por um policial, manifestando-se sobre esse cenário de violência.

26

MATERIAL
BÁSICO

play

O emocionado discurso da menina de 9 anos que chamou a atenção do mundo para a tensão racial nos EUA

Vídeo disponível no canal do YouTube da BBC News Brasil, 2016.

Mais recentemente, vemos que a violência nas cidades brasileiras não se restringe aos espaços públicos. A violência física ou o abuso sexual contra crianças e adolescentes acontece principalmente nos espaços domésticos. Os frequentes tiroteios e os assustadores índices de homicídio por balas perdidas de crianças dentro de casa e da escola em aglomerados urbanos nos mostram que a desigualdade sociorracial tem impactos cada vez mais profundos. No outro polo, meninas, brancas, das camadas superiores têm menor autonomia na circulação pela cidade, tanto por uma reprodução de um ideário de domesticidade quanto pelo perigo vivido por mulheres no espaço público. De algum modo, as experiências de cidade de todas as crianças são atravessadas pela ausência de segurança.

Pensar o direito da criança à cidade implica pensar também numa cidade que garanta o direito à vida da criança em espaços públicos e privados que sejam seguros. Uma cidade acessível e segura para as crianças é também uma cidade que acolhe as mulheres. Como exemplo, assista ao documentário experimental abaixo que nos mostra como pode ser distinto e desigual o cotidiano de duas mulheres na cidade, comparando diferentes acessos ao direito à cidade e trazendo pistas sobre como essa desigualdade também se faz presente na vida das crianças.

28

MATERIAL
BÁSICO

play

Direito à cidade | Dois Mundos, Uma Cidade

Vídeo disponível no canal do YouTube da Support the Right to the City, 2017.

Morar na periferia ou longe da concentração dos grandes equipamentos públicos, parques e/ou centros culturais, significa que não existem potenciais pedagógicos a serem trabalhados junto com as crianças? A resposta é não. Olhar para o nosso cotidiano com olhos apurados é fundamental para descobrir, juntos com as crianças, o quanto a cidade e o nosso entorno podem nos oferecer para o fortalecimento das relações de pertencimento e autoestima com o coletivo. Descobrir os valores e saberes locais que nos rodeiam é fundamental para o fortalecimento dessa vinculação que, acreditamos, é direito das nossas crianças exercer.

Finalmente, aponta-se que os lugares das crianças na cidade podem e devem ser múltiplos e fazem parte de redes de espaços públicos que conectem as cidades. Olhar para esses espaços livres e públicos como um sistema implica na elaboração de políticas públicas transversais que visem ao bem-estar integral das crianças. Pensar cidades para crianças implica articular o urbanismo, a educação, a saúde, a segurança viária, a cultura, a assistência social, o meio ambiente, entre outros campos que precisam atuar em conjunto para a formulação de políticas efetivas, que diminuam as desigualdades e a precariedade.

Veja abaixo duas interessantes experiências urbanas latino americanas de política pública intersetorial que visibilizam a ocupação da cidade pelas crianças, sua vinculação com a natureza e sua participação na construção desses e espaços.

MATERIAL
COMPLEMENTAR

Clique aqui
para ler a entrevista.

Parque Naturalizados em Fortaleza - CE

Com a pergunta “o que podemos fazer para trazer mais natureza para os espaços públicos e privados nas grandes cidades?”, a cidade de Fortaleza criou uma política pública para restaurar espaços degradados e expandir suas áreas verdes a partir do conceito de parques naturalizados. Esses novos microparques, além de fornecer benefícios ambientais aos bairros, promovem o contato rotineiro das crianças com elementos naturais.

Reportagem de Laís Fleury. Conexão Planeta, 12 fev. 2021.

4. Por onde e como as crianças circulam nas cidades?

Existem muitas crianças que andam a pé nas cidades para ir e vir da escola. Os horários próximos ao meio-dia, inclusive, são os momentos em que mais acontecem conflitos na circulação de pedestres e motoristas, pela saída do turno da manhã e entrada da tarde em muitas das escolas urbanas. O grande volume de crianças e adolescentes reunidos nas portas das escolas, mais os responsáveis que vão buscá-las, mais os professores saindo ou chegando fazem parte desse movimento pendular. Essa é, por exemplo, uma das razões pelas quais se reivindicam melhores projetos urbanos que visem à segurança viária das crianças e de suas famílias.

Em 2018, 1.010 crianças brasileiras de 0 a 14 anos morreram por causa de acidentes de trânsito, representando 30% de todas as mortes por acidentes. Em 2019, 10.832 crianças foram internadas no Brasil pelo mesmo motivo (CRIANÇA SEGURA, 2020). Em termos regionais, entre 2013 e 2018, Minas Gerais foi o segundo estado com maior número de óbitos e internações de crianças por acidentes de trânsito, depois do estado de São Paulo.


Os acidentes de trânsito envolvendo crianças têm mais prevalência quando elas estão na condição de ocupantes de veículos e, em seguida, quando são pedestres e sofrem atropelamentos. Esse tipo de acidente é a principal causa de morte de crianças de 5 a 14 anos no país (CRIANÇA SEGURA, 2020).


Esse tipo de fatalidade poderia ser reduzido a zero, que é a visão que compartilham os planos de mobilidade que estão sendo implementados nas grandes cidades brasileiras e no mundo, os quais promovem projetos e políticas que visam à segurança viária e aos modelos de cidades onde o automóvel não seja hegemônico nem o padrão de medida para as nossas ruas.

Um dos manuais recentes que propõe ações específicas para a configuração de ruas com foco nas crianças é o Desenhando Ruas para Crianças (2020), que apresenta dez princípios para melhorar as ruas para as crianças:

(1) Pensar a partir de 95 cm, altura média de uma criança de 3 anos de idade.

(2) Desincentivar o uso de veículos particulares, realizando mudanças para o transporte público ou modos ativos (caminhada e bicicleta).

(3) Aumentar a confiabilidade do transporte coletivo: essas questões estão associadas ao conforto, à frequência e à disponibilidade do transporte coletivo de qualidade em todas as regiões da cidade.

(4) Construir calçadas largas e acessíveis, buscando uma nova configuração do espaço livre público.

(5) Acrescentar espaços para brincadeira e aprendizagem, diretriz esta que visa a elementos que propiciem às crianças espaços para experimentação da cidade a partir do lúdico.

(6) Fornecer uma infraestrutura cicloviária segura, oferecendo alternativas para o deslocamento de crianças e cuidadoras/es.

(7) Melhorar as travessias de pedestres, buscando diminuir os riscos e aumentar a segurança viária.

(8) Reduzir intencionalmente as velocidades, estabelecendo vias com velocidade máxima reduzida e planejando o desenho delas de forma a favorecer tal comportamento.

(9) Promover a arborização e o paisagismo, que, além de promover o vínculo das crianças com a natureza, favorece a qualidade do ar e temperaturas mais amenas.

(10) Priorizar as crianças nas políticas públicas, lembrando que, para essa questão, irrefutavelmente, é preciso a participação delas.

Entretanto, refletir sobre o andar das crianças nas cidades, que muitas vezes andam com suas cuidadoras e cuidadores, no caso das mais pequenas, é contemplar que esses deslocamentos ocupam um espaço no território, o qual é permanente nas cidades como parte da nossa reprodução e da nossa vida em sociedade.

Você pode estar pensando: isto é muito bonito no papel, mas como fazer? Veja abaixo uma série de experiências nacionais e estrangeiras que nos ajudam a pensar uma cidade para as crianças.

MATERIAL COMPLEMENTAR

Clique aqui
para ler a entrevista.

Bogotá y Fortaleza son buenos ejemplos de calles diseñadas para los niños”.

O que faz que uma rua seja pensada – também – para crianças? As cidades de Fortaleza e Bogotá transformaram algumas de suas ruas pensando no bem-estar e na segurança das crianças, a partir da prioridade da bicicleta, criando novos espaços públicos e diminuindo o espaço do automóvel, entre ações que promovem o encontro e o brincar.

Reportagem disponível em La Network, 13 ago. 2020.

MATERIAL COMPLEMENTAR

Clique aqui
para ler a entrevista.

Urbanismo tático permite que alunos de Campinas ajudem a repensar entorno de escola

A partir de estratégias de urbanismo tático, e envolvendo as crianças no processo, a empresa municipal de transporte em Campinas materializou um projeto que melhorou a entrada e saída das crianças e cuidadoras(es) da escola, entre outras problemáticas que afligiam a comunidade escolar.

MATERIAL
BÁSICO

play

Trecho de Intervenções espaciais com crianças

Trecho da palestra do ciclo de seminários Infâncias na cidade, com a participação de Adriano Mattos Correia (UFMG) e Eveline Trevisan (BHTrans/UFMG), disponível originalmente no canal do YouTube do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil, 2021.

No vídeo sugerido acima, Eveline Trevisan conta sobre a experiência do projeto Zona 30 em Belo Horizonte. Projetos como esse, além de visarem à qualificação dos espaços públicos nos entornos escolares, visibilizam a ocupação do território pelas crianças. A intervenção tem sido realizada em diversos bairros da cidade, sendo o piloto no Bairro Cachoeirinha, área com presença de várias escolas e altos índices de atropelamento de pedestres, onde a comunidade escolar, a partir das escolas como equipamentos de referência, foi envolvida em todo o processo. O projeto mais completo foi realizado no Bairro Confisco, onde se exalta o protagonismo das crianças da Escola Municipal Anne Frank e de outros grupos vulneráveis da região.

Crianças observando a cidade em diferentes excursões, 2017
Fonte: Acervo pessoal de Túlio Campos. 2019..

Nesse sentido, é de grande importância considerar que o tempo das crianças é diferente do tempo de nós, adultos. A educadora Maria Montessori, ao discutir sobre o “andar”, aponta como o adulto se desloca para um fim e para uma meta, já a criança, nessa jornada, tinha outros propósitos. Andar é contemplar, é tocar, é explorar, é usar os cinco sentidos.

Veja abaixo uma notícia e vídeos que nos provocam a pensar a exploração da cidade e o deslocamento urbano a partir da perspectiva da criança em diferentes lugares do mundo. Já pensou como é ocupar com as crianças uma das principais praças da metrópole paulistana? As crianças da EMEI Armando Arruda Pereira na praça da República, no centro de São Paulo, nos trazem imagens a respeito. Com triciclos e flores, as crianças de até 6 anos perambulam por esse espaço público e conversam com os transeuntes junto a suas professoras.

A bordo de triciclos, crianças distribuem flores e desbravam centro de SP

Reportagem de Tereza Novaes. TAB Uol, 5 jun. 2022.

Assista, também, no vídeo abaixo as crianças de San Agustín del Sur, bairro popular de Caracas, apresentando como seu bairro é alegre, cheio de música e cor, enquanto são filmados pintando e explicando como ressignificaram a escadaria pela que sempre passam, como espaço de encontro e de brincadeiras.

MATERIAL
BÁSICO

play

Escalera de la quinta calle del barrio de Marín

Coalición Unidos San Agustín Convive. Caracas, Venezuela, 2017.

Não perca, ainda, a série Jovens Exploradores, que conta a experiência de três crianças de até 6 anos. Tristam em Canarsie, Nova Iorque, Lulu em Recife, Pernambuco, e Ahaan em Pune, Índia, exploram suas cidades a partir da caminhada. Cair e levantar-se, andar de costas, recolher uma folha seca do chão e cumprimentar aos vizinhos, faz parte do deslocamento para elas.

MATERIAL
BÁSICO

play

Série Jovens Exploradores. Tristam em Canarsie, Lulu em Recife e Ahaan em Pune

Vídeos disponíveis, respectivamente, no canal do Vimeo de Wild Combination, Estados Unidos, 2018; e no canal do YouTube de Bernard van Leer Foundation, Brasil, 2019 e Índia, 2019.

Em que as experiências das crianças desses vídeos se diferenciam? Quais são os olhares em comum entre elas?

Além da caminhada, é necessário prever que os sistemas de transportes coletivo acolham as crianças e forneçam a elas e suas famílias viagens mais seguras e acessíveis. Principalmente as crianças que moram em áreas periféricas, mais distantes dos equipamentos urbanos de cultura e lazer, têm maior dificuldade em acessar áreas das cidades que impliquem longas distâncias, tanto pelo preço da passagem como pela própria frequência e cobertura das linhas de transportes em alguns setores das cidades. Pensar no acesso ao transporte das crianças mais pequenas é também pensar em quem cuida delas, criando igualmente condições confortáveis e acessíveis para essas pessoas.

Veja abaixo a notícia de liberação da catraca para as crianças em Belo Horizonte. Para se aprofundar no assunto, indicamos a tese de doutorado de Túlio Campos sobre como as crianças conhecem e exploram a cidade nas excursões escolares do Programa BH para as crianças.

A escola e a cidade: experiências de crianças e adultos em excursões na Educação Infantil

Tese de Túlio Campos, defendida, em 2019, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Lei libera catracas para crianças de até 5 anos nos ônibus de BH

Reportagem de Cristiane Silva. Estado de Minas, 30 dez. 2021.

Logo, olhar para a mobilidade de crianças nas cidades implica em uma visão sistêmica sobre o assunto, formulando programas e políticas que assumam esse transitar como um assunto educativo, mas também ambiental e de sociabilidade, entre outros fatores que se misturam. Requalificar os espaços públicos em frente às escolas é tão importante como planejar em quantas escolas se fará esse tratamento e por onde começar. Construir melhores calçadas, com arborização e mobiliários adequados, é tão importante como implementar programas educativos que ofereçam às comunidades outras alternativas de deslocamento, como as bicicletas, promovendo uma mudança de hábito e de relação com os espaços urbanos. Ainda, faz parte desse movimento promover políticas de melhoria e ampliação dos serviços de mobilidade urbana, como a ampliação de linhas e frotas de transporte coletivo, além de subsídios públicos que resultem em tarifas mais justas e acessíveis. Veja abaixo algumas importantes políticas públicas e iniciativas neste sentido.

MATERIAL
COMPLEMENTAR

play

As Secretarias de Mobilidade e Educação criaram um programa que promove o deslocamento das crianças até as escolas em bicicleta, o qual têm contribuído para a aprendizagem em outras áreas, assim como incrementado a autoestima e sociabilidade delas.

Vídeo disponível no canal do YouTube do El Tiempo, Bogotá, Colômbia 2018.

Intervenção urbana nos entornos escolares: Protegendo as escola

A cidade de Barcelona criou uma política pública que realiza melhorias nas ruas ao redor das escolas para deixá-las mais seguras e saudáveis através do acalmamento do trânsito, dando mais espaços aos acessos do equipamento, ampliando as áreas de permanência e de vegetação e áreas para o brincar espontâneo.

Em Fortaleza, crianças ganham mais uma estação de bikes públicas

A cidade de Fortaleza incorporou no seu programa de bicicletas públicas compartilhadas, bicicletas para o público infantil. Além de ser de baixa estatura, as bicicletas infantis contam também com rodinhas, para promover o primeiro contato das crianças com este modo de transporte não motorizado.

Reportagem disponível em Mobilize Brasil, 2021.

No próximo módulo vamos continuar debatendo sobre as relações entre infância e cidade, discutindo especialmente a participação das crianças como direito e a importância de ampliarmos nossos referenciais para ouvirmos as crianças em suas diferentes formas de expressão.

Gostou do assunto e quer saber mais?

Veja abaixo um conjunto de exemplos de políticas intersetoriais para a infância na América Latina:

play
PODCAST:

No sétimo episódio da série de podcast “A criança e a cidade”, a arquiteta e urbanista Sylvia Angelini fala sobre o processo de sensibilização de servidores públicos para a escuta e a participação da criança na elaboração de planos, programas e projetos.

play
VIDEO

O menino que perdeu sua geografia

Uma adaptação do conto de Jader Lopes com desenhos de Juan Enrique Plaza. O vídeo baseou-se na obra de Jader Janer e foi utilizado no Chile para a Campanha “MINEDUCNOMATESLAGEOGRAFIA”, que buscou impedir que o Ministério da Educação retirasse a Geografia do currículo escolar.

Vídeo disponível no canal do YouTube do Geografia da Infância, 2015.

play
VIDEO

O vídeo Construção de Plano de Estudos Tutorado (PET), com base na cultura e língua Maxakali, produzido por Mariana Mitre, Alessandra Iglesias e Thiago de Paulo Pacheco (2021), trata da construção coletiva de um plano de estudos no contexto indígena da EE Indígena Capitãozinho Maxakali, em Bertópolis, Minas Gerais. Aldeias indígenas como as do Maxakali estão inseridas em um território que não corresponde ao nosso imaginário social de cidade. Mas vale ressaltar que, diante das grandes transformações na economia nas últimas décadas e da aceleração dos processos de produção do espaço, muitas dessas comunidades não podem mais ser vistas como apartadas da realidade urbana, que também permeia a sua realidade. Podemos, ainda, nos pautar no que a prática de resistência dos povos tradicionais latino-americanos defende como o bem viver para construir um novo paradigma para o planejamento das cidades e a construção das políticas públicas, cultivando a harmonia na relação entre seres humanos e natureza, compreendendo a complementaridade presente na diversidade que nos atravessa, e nos deslocando de uma trajetória de exclusão e violência.

PUBLICAÇÃO

O projeto “Infâncias e Adolescências Invisibilizadas: da escola ao cotidiano – a prioridade absoluta abandonada pelo Estado” lançou uma série de estudos que denunciam a situação de negação de direitos de crianças e adolescentes invisibilizados. Organizado em uma agenda coletiva de pesquisa e política, os participantes envolvem entidades e movimentos populares em defesa dos direitos humanos, a saber: Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras). Também participaram do desenvolvimento dos estudos a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ). A publicação é composta por oito pesquisas que sistematizam dados e apresentam leituras contemporâneas sobre a ação e a ausência do Estado como assegurador de direitos de crianças e adolescentes nos seguintes contextos: quilombola, indígenas, em medidas socioeducativas, da agricultura familiar, migrantes, em áreas de reforma agrária, em situação de rua e de territórios urbanos em situação de violência. Os estudos encontram-se disponíveis no acervo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

CINEMA

A horas das crianças: acampamentos e escolas ao ar livre, a revolta educacional na Catalunha O documentário de 2022 tem direção de Eduard Miguel e Martí Boneta, produção de Goita! Audiovisuals e participação de TV3, e suporte do Departamento de Cultural Geral de Alacarta.

Você pode baixar o PDF interativo deste módulo.

Se você for ler o conteúdo em telas pequenas (celulares e tablets), clique aqui.
Se você for ler o conteúdo em telas maiores ou deseja imprimir o material em folhas A4,clique aqui.

Referências bibliográficas

  • ABRAMOWICZ, Anete. Estudos da infância. Florestan Fernandes: cultura infantil. In: ______. (org.) Estudos da infância no Brasil: encontros e memórias. São Carlos: EdUFSCar, 2015b. p. 15-22.

  • AZEVEDO, Giselle; TANGARI, Vera; FLANDES, Alain. O habitar das infâncias na cidade: territórios educativos como uma forma de resistência. Desidades, Rio de Janeiro, n. 28, p. 111-126, dez. 2020.

  • BANCO MUNDIAL. Población urbana. Datos. 2021. Disponível em: https: //data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS Acesso em: 04 jul. 2022.

  • BERNET, Jaume Trilla. La Educación y la Ciudad, 1997 Disponível em:https: //dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5704972.pdf Acesso em: 04 jul. 2022

  • BIZZOTTO, Luciana. Territorialidades infantis na ocupação Rosa Leão (Belo Horizonte-MG). 2022.

  • CENTRO DE REFERÊNCIAS EM EDUCAÇÃO INTEGRAL. Território Educativo. [s.d.]. Conceito. Disponível em: https: //educacaoeterritorio.org.br/conceito-territorios-educativos Acesso em 18 de jul. 2022

  • COUTINHO, Rejane. Mário de Andrade e a Arte/Educação. Rebento. São Paulo, no. 11, p. 30-56, dez. 2019.

  • CRIANÇA SEGURA. Entenda os acidentes. 2020. Disponível em: https://criancasegura.org.br/entenda-os-acidentes/ Acesso em: 04 jul. 2022.

  • FERNANDES, Florestan. As “Trocinhas” do Bom Retiro. Contribuição ao Estudo Folclórico e Sociológico da Cultura e dos Grupos Infantis. Pro-Posições, v.15, n. I (43) – jan./abr. 2004.

  • GLOBAL DESIGING CITIES INICIATIVE. Desenhando Ruas para crianças. Nova York: 2020.

  • GOBBI, Marcia et al. – Entrimagens (site). 2020. Disponível em https: //entrimagens.com.br/ Acesso em: 04 jul. 2022.

  • GOMEZ, Hilda; SANCHEZ, Jesús; FLOREZ, Nancy. A cidade educadora e a formação fora da escola. In: AICE. Espaços urbanos e cidades educadoras. Caderno N° 5. Rosário: 2019. p.17-26.

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2016. Rio de janeiro: IBGE, 2016. Estudos e Pesquisas num. 36.

  • ______. Aglomerados subnormais 2019: classificação preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à COVID-19. Rio de janeiro: IBGE, 2020.

  • LIMA, Mayumi S. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989.

  • LOPES Jader; VASCONCELLOS, Tânia. GEOGRAFIA DA INFÂNCIA: Territorialidades Infantis. Currículo sem Fronteiras, v.6, n.1, pp.103-127, Jan/Jun 2006.

  • MAPBIOMAS. Área urbanizada nos últimos 36 anos: destaques do mapeamento anual das áreas urbanizadas no Brasil entre 1985 a 2020. Coleção 6. Nov. 2021.

  • MOLL, Jaqueline et al. Escola pública brasileira e educação integral: desafios e possibilidades Revista e-Curriculum, São Paulo, v.18, n.4, p. 2095-2111 out./dez. 2020.

  • MONTESSORI, Maria. A criança. Capítulo 11: Andar. 1988.

  • NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL - NEPEI. Pesquisa Infância e Pandemia (site). Enviado por vocês. Mural de fotos/desenhos recebidos. 2021 Disponível em: https: //infancia-em-tempos-de-pandemia.webnode.page/enviados/ Acesso em: 04 jul. 2022.

  • PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS DE DESENVOLVIMENTO - PNUD. Em uma armadilha: alta desigualdade e baixo crescimento na América Latina e no Caribe. Brasil. 22 jun. 2021.

  • TONUCCI, Francesco. A criança como paradigma de uma cidade para todos. Entrevista por Raiana Ribeiro. Educação e Território, 21 de set. de 2016. Reportagem. Disponível em: https: //educacaoeterritorio.org.br/reportagens/francesco-tonucci-a-crianca-como-paradigma-de-uma-cidade-para-todos/. Acesso em: 04 jul. 2022.

  • UNICEF. Crianças e adolescentes foram os mais afetados pela pobreza monetária no Brasil na pandemia, diz UNICEF. 24 mar. 2022. Disponível em:https: //www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/criancas-e-adolescentes-foram-os-mais-afetados-pela-pobreza-monetaria-no-brasil-na-pandemia Acesso em: 30 de mar. de 2022.

Módulo 3: Participação infantil

cliquelaranja
roda de crianças

O que você vai ver aqui?

Neste módulo vamos debater a participação das crianças como um direito. Vamos, também, conhecer experiências de diversos contextos socioeconômicos e culturais que evidenciam os modos peculiares como elas participam na vida política. Discutiremos como o direito à cidade compreende a participação infantil e que para escutar as crianças precisamos nos distanciar de nossos referenciais adultocêntricos.

As perguntas orientadoras deste módulo são:

  • As crianças podem participar?
  • Como as crianças participam da vida social e política?
  • Como escutar as crianças?

3

1.Introdução

No Módulo 1, vimos que participar é um direito das crianças e adolescentes, afirmado tanto em convenções internacionais como nas legislações nacionais de muitos países. Agora, para que meninas e meninos possam efetivamente exercer esse direito, é fundamental que existam iniciativas e espaços para isso.

Na publicação Participação política de crianças e adolescentes, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA), você poderá conhecer, em profundidade, como o direito à participação é parte fundamental dos direitos de crianças e adolescentes e é, também, imprescindível para que elas efetivem o exercício da cidadania e sejam reconhecidas em ambientes democráticos.

4

MATERIAL
BÁSICO

Clique aqui
para ler o texto

Participação política de crianças e adolescentes


Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA). 2017.

Porém, pensar e criar espaços para a participação das crianças nos impõe desafios. O primeiro deles é entender que as crianças participam da vida social (e política) de modo diferente dos adultos. A participação das crianças acontece por meio de diferentes linguagens, quase sempre marcadas pela imaginação, que é uma “lente” pela qual as crianças se relacionam com o mundo. O brincar, como forma de perceber e se comunicar, é também uma forma de socialização e aprendizagem entre as crianças. No brincar e nas diversas formas de interação com o outro, seja entre seus pares ou com os adultos, a criança exerce um aprendizado da vida coletiva, bem como interpreta e elabora sobre o mundo em que vive, expressando-se.

Um ponto importante a ser superado é a ideia de que as crianças devem participar apenas de temas relativos ao que se denomina por “universo infantil”. As crianças podem reivindicar melhores condições de vida e convivência com os outros? Não só podem, como devem e, na verdade, já o fazem. Como apresentaremos a seguir, crianças do mundo inteiro, em diferentes contextos e condições sociais, não somente lutam diariamente por condições mínimas de subsistência e direitos básicos para a preservação da vida, mas também participam de debates relativos ao direito à cidade e às questões ambientais, por exemplo.

5

Porém, para escutar as crianças, não podemos pensar nas mesmas formas de diálogo nem esperar elaborações semelhantes às dos adultos. Para escutá-las é necessário um distanciamento de nosso referencial adultocêntrico e buscar formas mais sensíveis para estabelecer diálogos e pontes; estar aberto e atento às sutilezas e riquezas do universo infantil, e compreender que as expressões das crianças se diferenciam das dos adultos por terem outros tempos e formas de elaboração e de comunicação.

A seguir, convidamos você a conhecer diferentes formas de se comunicar com as crianças e, principalmente, de escutá-las, a fim de construir com elas e para elas espaços de participação infantil.

6

2. As crianças podem participar?

Como vimos no Módulo 1, falar de infância ou criança na atualidade é muito diferente de como foi em décadas ou séculos passados. Pensemos na própria etimologia da palavra infância: você sabia que sua origem vem do latim, infantĭa, no sentido de dificuldade ou incapacidade de falar, mudez, que não fala?

menina com megafone

7

Para algumas correntes filosóficas, especialmente no mundo ocidental, não ter domínio da linguagem, em especial da linguagem oral, era sinônimo de não possuir pensamento, conhecimento ou até mesmo de não ser racional. Ou seja, a criança era vista como sujeito menor, alguém que precisava ser moralizada, preparada para se manifestar apenas quando adulta.

Porém, pesquisadores e pesquisadoras têm denunciado que continuar descrevendo a infância pela negação é, na verdade, uma expressão do nosso adultocentrismo. Nós, adultos, continuamos adjetivando a infância a partir do que falta nela, ou do que a criança não pode ser ou fazer, por trás da noção do “vir a ser”. O desafio é compreender que a criança vive uma condição peculiar de desenvolvimento e não é inferior em relação ao adulto. Assim, a infância não é um período de preparação para a vida adulta, mas é um tempo no ciclo da vida com formas próprias de compreensão e significação da realidade, como a juventude, a adultez e a velhice.

banderolas

Para compreender as crianças como sujeitos participantes ativos na construção da sociedade, Manuel Sarmento, professor de Sociologia da Infância da Universidade do Minho, em Portugal, propõe não buscar ausências nas crianças a partir de parâmetros adultos, mas vislumbrar outras características.

8

A infância não é a idade da não fala: todas as crianças, desde bebês, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais) porque se expressam. A infância não é a idade da não razão: para além da racionalidade técnica-instrumental, hegemônica na sociedade industrial, outras racionalidades se constroem, designadamente nas interações de crianças, com a incorporação de afetos, da fantasia e da vinculação ao real. A infância não é a idade do não trabalho: todas as crianças trabalham, nas múltiplas tarefas que preenchem os seus cotidianos, na escola, no espaço doméstico e, para muitas, também nos campos, nas oficinas ou na rua. A infância não vive a idade da não infância: está aí, presente nas múltiplas dimensões que a vida das crianças (na sua heterogeneidade) continuamente preenche (SARMENTO, 2007, p. 35-36).

9

A criança é um sujeito que vem ao mundo inserida em uma cultura na qual valores e conhecimentos lhes são transmitidos. Contudo, ela também produz cultura, ao dar significado às suas experiências sociais. Entendendo a cultura como um sistema simbólico, podemos afirmar que a criança elabora suas próprias interpretações e dá sentido ao mundo que a rodeia se expressando de múltiplas formas. Isso significa, também, considerar que a diferença entre crianças e adultos não é quantitativa, mas qualitativa, de modo que não se pode dizer que uma criança sabe menos, pois ela sabe, na verdade, outras coisas e de outra forma.

Nos vídeos a seguir, apresentamos duas experiências de crianças de diferentes contextos socioeconômicos e geográficos que evidenciam a participação infantil em situações políticas diversas. O primeiro vídeo traz uma experiência nos Países Baixos de 1972, quando crianças de De Pijp se organizaram e evidenciaram a necessidade de uma rua para brincar no bairro em que moravam, que era de alta densidade populacional e tinha muitos automóveis, ocupando a maior parte do espaço público.

10

MATERIAL
BÁSICO

play

Em nome das crianças do Pijp (Amsterdam, 1972)

Vídeo disponível no canal do YouTube de Ícaro Farias, 2015.

ciranda

11

O próximo vídeo narra uma experiência chilena, na qual crianças com suas famílias foram à Plaza de la Dignidad para defender seus pontos de vista e argumentar sobre os seus motivos da necessidade de construção de um país mais democrático e de uma sociedade nova. Veja como o contexto dos protestos foi uma explosão de manifestações, que começaram com estudantes do ensino médio, no fim de 2019, incentivados pelo aumento da passagem de metrô, mas que depois denunciavam também a violência policial e os altos índices de desigualdade no país.

MATERIAL
BÁSICO

play

Los niños y niñas de la dignidad

Vídeo originalmente disponível no canal do YouTube da Piola Vaguita, Santiago, 2020.

12

O que você acha dessas experiências de participação política das crianças? Você conhece outros casos de crianças que têm lutado pelos seus direitos?

Esses vídeos demonstram que, sim, as crianças podem e devem participar da vida política e social. Seus pontos de vista são singulares e relevantes, e elas revelam, inclusive, forte capacidade de propor soluções, a partir de seus olhares e experiências.

A participação como direito no Brasil é resguardada às crianças principalmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Vimos no Módulo 1 que, anos após a promulgação do ECA, em 2016, foi aprovado o Marco Legal da Primeira Infância. Essa lei federal modificou e aprofundou alguns dos direitos adquiridos no ECA, em especial em relação à proteção e às necessidades específicas das crianças de 0 a 6 anos, período denominado como primeira infância. Uma das ações mais importantes do Marco Legal é que ele atribui aos estados e municípios a competência de elaboração dos Planos Municipais pela Primeira Infância (PMPI) a partir de abordagens multi e intersetoriais. Tais planos devem prever a participação e a escuta das crianças em relação às políticas públicas que lhes digam respeito.

13

Assista ao vídeo a seguir em que representantes da prefeitura de Campinas compartilham sua experiência na elaboração do PMPI e leia a entrevista em que a cientista social Mariana Koury fala de estratégias de participação das crianças.

MATERIAL
BÁSICO

play

A infância em Campinas

Vídeo disponível no canal do YouTube do Centro de Criação de Imagem Popular, 2019.

Participação infantil: opinar também é direito das crianças


Entrevista a Mariana Koury por Mayara Penina. Portal Lunetas, 2016.

14

Como usuárias habituais dos serviços públicos de saúde, educação, assistência social, cultura e segurança, a participação das crianças em processos coletivos de apropriação e reivindicação pelo acesso aos espaços da cidade é um direito. Em todos esses assuntos as crianças devem ser consultadas e também podem sugerir propostas e manifestar suas inquietações. Ainda, a criação de espaços para que as crianças exerçam sua cidadania é uma forma de promover seu direito à cidade.

Várias pesquisas e experiências, como as relatadas nos materiais anteriores, têm indicado que as crianças não se interessam apenas por temas ligados ao que se entende por “mundo infantil”, ou a seus interesses individuais, mas demonstram preocupação pelo convívio intergeracional, isto é, com pessoas mais velhas: jovens, adultos e idosos. A partir daquilo que lhes é apresentado como “mundo adulto”, muitas vezes, elas demonstram empatia e solidariedade por grupos vulneráveis nas cidades, revelando capacidade de entendimento sobre os espaços urbanos em uma perspectiva plural.

15

A construção de formas de participação das crianças nas políticas públicas é um percurso marcado por vários obstáculos. De um lado, afirma-se que a vulnerabilidade das crianças gera uma demanda por proteção pelo adulto e, consequentemente, alimenta a ideia de que elas são incapazes de assumir responsabilidades por si mesmas. Por outro, afirma-se o entendimento da criança como sujeito de direitos civis, dentre os quais está o direito a participar de decisões que interferem nas suas vidas. O texto a seguir nos ajuda a refletir sobre esse debate.

Os Direitos das Crianças nas encruzilhadas da Proteção e da Participação






Texto de Natália Fernandes Soares, publicado na revista Zero-a-Seis, v. 7, n. 12, 2005.

16

A tensão entre as perspectivas pela proteção e pela participação se manifesta, por exemplo, na crítica ou na defesa de a criança participar com os adultos de ações e manifestações coletivas junto de movimentos sociais, como ocupações ou passeatas. O vídeo a seguir traz o caso de uma experiência norte-americana, que ocorreu na cidade de Birmingham, Alabama, em 1963. Na ocasião, mais de 700 crianças negras saíram da escola para protestar contra a segregação racial nos Estados Unidos, situação na qual a polícia local respondeu com agressões, ataques de cães e até mesmo a prisão de crianças.

MATERIAL
BÁSICO

play

Crianças negras presas e agredidas na Cruzada Infaltil de Birmingham

Vídeo disponível no canal do YouTube de Bruno Bispo, 2020.

17

Curiosidade:

Veja como a filósofa e ativista antirracista Angela Davis analisa a tensão entre permitir ou não que as crianças negras participassem desse movimento ocorrido nos Estados Unidos, em 1963, em defesa dos seus direitos.

Lembro que, em 1963, durante a época da luta pelos direitos civis, antes da Marcha sobre Washington, no verão daquele ano, houve uma cruzada infantil em Birmingham, Alabama. As crianças foram mobilizadas para enfrentar jatos d’água de alta potência e a polícia, que em Birmingham estava sob as ordens de Bull Connor. Óbvio que algumas pessoas não concordaram em permitir que as crianças tivessem tal grau de participação – mesmo Malcom X pensava que não era apropriado expô-las a tamanho perigo –, mas elas quiseram participar. E as imagens das crianças fazendo frente aos cães da polícia e aos jatos d’água circularam por todo o mundo, ajudando a criar uma conscientização global sobre a brutalidade do racismo. Foi uma iniciativa extraordinária. E esse papel que as crianças desempenharam para romper a barreira de silêncio em torno do racismo é algo com muita frequência esquecido. (DAVIS, 2018, p. 81)

A situação descrita por Angela Davis, historicamente situada, evidencia o quanto as crianças foram protagonistas naquela ação e como a sua participação colaborou para o fortalecimento do movimento negro americano. Contudo, não se pode desconsiderar a tensão presente no ato de colocá-las na linha de frente em um confronto com a polícia. Esse é, portanto, um dos paradoxos que marcam as reflexões sobre proteção e participação infantil.

18

Na perspectiva de muitos adultos, as crianças não estão preparadas para a participação social devido à sua falta de competência e responsabilidade. Essa visão limita o direito de participação em relação a outros direitos, e coloca no centro do debate a necessidade de a sociedade rever a relação assimétrica entre adultos e crianças e construir espaços de diálogo e negociação. Nesse sentido, um caminho importante é o de superar a ideia de que as crianças são como folhas em branco, receptoras passivas de um processo de socialização, em uma lógica na qual o adulto é um mero transmissor de conhecimento, ideia já amplamente debatida e superada no campo da pedagogia.

19

3. Como as crianças participam da vida social e política?

Como afirmamos, as crianças participam se expressando por diferentes linguagens. Mas elas também participam em formas e espaços de construção coletiva tipicamente adultos, como fóruns, assembleias e comitês. Nesses espaços, a participação das crianças se dá, inclusive, na interlocução com as práticas adultas, nas quais elas podem opinar e construir junto. Em um movimento em que elas internalizam valores e apreendem o mundo.

Como nos aponta Francesco Tonucci na palestra Pode um vírus mudar a escola?, “a democracia é uma experiência formativa. Nela, as crianças devem ser protagonistas e não apenas destinatários”. Ao fazer uma breve retrospectiva sobre como as infâncias foram afetadas pelo isolamento social durante a pandemia de Covid-19, o pedagogo nos relembra que, entre outras mudanças necessárias à escola, encontra-se a criação de espaços de participação ativa das crianças, como em conselhos infantis.

20

MATERIAL
BÁSICO

play

Pode um vírus mudar a escola?

Vídeo disponível originalmente no canal do YouTube do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil, 2021.

Mas em que consiste a participação ativa de crianças? Bom, acreditamos que para possibilitar que as crianças (e também os adultos) possam participar ativamente de projetos, planos e ações é essencial ampliar nossas perspectivas de participação. A participação na vida pública vai muito além da mera consulta às crianças sobre um tema, podendo ocorrer em diferentes situações e de modos, igualmente, variados. É também importante garantir que meninos e meninas participem do planejamento, da organização, da execução e, por que não, da avaliação de tais ações, tendo a possibilidade de expressarem suas ideias, em diálogo com as questões coletivas, e serem ouvidos com sensibilidade.

21

Cabe destacar que a participação das crianças e a própria ideia de protagonismo infantil têm sido compreendidas em nossa sociedade a partir de uma perspectiva idealizada de infância, que não necessariamente corresponde à realidade de países desiguais e diversos como o Brasil. Assim como apontamos no Módulo 1, é importante estarmos atentos para compreender que a concepção universal de infância que permeia nosso imaginário social não coincide com a realidade experimentada por todas as crianças.

No contexto brasileiro, por exemplo, a discussão da participação infantil ganhou maior visibilidade no processo de redemocratização nos anos 1980, quando a luta por direitos e pelo exercício da cidadania foi amplamente apropriada por grupos sociais organizados, em sua maioria parte das populações vulneráveis, na busca por direitos. A manifestação desses grupos, como mulheres, indígenas e negros, trouxe relevância às categorias identitárias, nas quais as particularidades das reivindicações de crianças e jovens ficaram mais visíveis, assim como a demanda pelo reconhecimento de seu protagonismo na ação política e de sua condição de atores sociais.

22

Leia o texto a seguir que discute a participação infantil a partir da inserção de crianças em dois movimentos sociais brasileiros: o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e o Movimento dos Sem Terra.

MATERIAL
BÁSICO

Elitiel Guedes, 2021

leitura

Clique Imagem disponível no site flickr.

crianças mst

Movimentos sociais, participação infantil e direitos das crianças no Brasil

Texto de Isabel Silva, Levindo Carvalho e Maria Cristina Gouvea, publicado na revista Educação e Pesquisa, 2021.

23

Os vídeos a seguir apresentam exemplos de espaços comunitários de participação infantil na América Latina. O primeiro apresenta a iniciativa de uma fundação no bairro Pátio Bonito, em Bogotá, na qual crianças participam de diversos projetos a partir de seus interesses, aprendendo sobre seus direitos e como exercê-los.

MATERIAL
BÁSICO

play

Experiência colombiana de organização comunitária e protagonismo infantil

Vídeo disponível no canal do YouTube da Fundación PT, Bogotá, Colômbia, 2019.

24

Já o segundo vídeo traz a experiência da Escola de Comunicação da Meninada do Sertão, da Fundação Casa Grande em Nova Olinda, Ceará, na qual crianças e adolescentes não apenas puderam expressar suas opiniões e desejos, mas também tomaram frente e geraram, junto a outros adultos, um projeto cultural comunitário, participando como sujeitos coletivos e históricos.

MATERIAL
BÁSICO

play

Escola de Comunicação da Meninada do Sertão, Fundação Casa Grande Nova Olinda, Ceará

Vídeo disponível no canal do YouTube do Centro de Criação de Imagem Popular, 2014.

Entre nós, adultos, as formas de participação se dão através de espaços organizados, em que se exprime uma racionalidade centrada na oralidade e na escrita, e se apresentam e discutem pontos de vista. Contudo, no caso das crianças, nem sempre é assim. Como afirmou uma criança integrante do Movimento de Crianças Trabalhadoras no Peru: “Os adultos falam demais” (TAFT, 2014). Mas quais seriam as outras formas de participação das crianças?

25

Como vimos no Módulo 1, a noção de infância universal é baseada numa experiência social fortemente institucionalizada, no âmbito doméstico e escolar. Nesse contexto, a participação é mais compreendida como um processo de formação para a vida adulta ou reproduz modelos de participação, organizados a partir da perspectiva adulta e individualista, restringindo-se meramente ao exercício do voto. Essa compreensão perde de vista a diversidade de possibilidades de participação centradas na ludicidade e na expressão coletiva que observamos pelos vídeos anteriores, especialmente a partir da prática do brincar.

O brincar é uma prática essencial para o desenvolvimento e socialização das crianças, e também uma forma de expressão e interpretação do mundo. A brincadeira, em muitos casos, é o modo de resistir a situações de violência e opressão vividas. Nesse sentido, espaços na cidade qualificados, seguros e em condições favoráveis para o brincar espontâneo e autônomo representam meios para as crianças participarem.

26

Como exemplos desse exercício, assista ao vídeo do projeto Menino Mestre. Nele, o pesquisador da cultura popular e brincante Roquinho Soares registrou os saberes das crianças e sua relação com a natureza. No vídeo, as crianças explicam como constroem seus brinquedos e como, ao mesmo tempo, constroem uma experiência comunitária.

MATERIAL
BÁSICO

play

Projeto Menin@Mestre Piorra De Cabacinha Mercadinho

Vídeo disponível no canal do YouTube da Carretel Cultural, 2007.

27

Veja, também, no vídeo O direito de brincar, crianças de Salvador (BA) que explicam como e em quais condições brincam, e especialistas falam sobre as potencialidades das ações lúdicas, assim como a importância de assumir o brincar como elemento estruturante na vida das crianças.

MATERIAL
BÁSICO

play

O direito de brincar (Rede Nacional Primeira Infância)

Vídeo disponível no canal do YouTube do Avante – Educação e Mobilização Social, 2017.

Falando do brincar como forma de participação, veja a seguir o documentário sobre os desejos de crianças de diversos bairros em Recife (PE) para uma nova moradora do local – uma bebezinha – e o processo de construção da música que compuseram para ela.

28

MATERIAL
COMPLEMENTAR

Rua de crianças

Documentário sobre as ideias de cidade e espaço público de crianças para a composição coletiva da música “Bebezinha”, em Recife.

Vídeo disponível no canal do Vimeo da Usina da Imaginação, 2019.

Achou interessante a experiência? Ouça também o 13º episódio do podcast Cidades Possíveis, em que Eveline Trevisan, arquiteta e urbanista de Belo Horizonte, e Rita de Cacia Oenning da Silva, uma das diretoras do documentário, se encontram para um bate-papo sobre suas experiências com infâncias e cidades.

MATERIAL
COMPLEMENTAR

play

Episódio #13: Rua de crianças, Cidades Possíveis, com Eveline Trevisan e Rita de Cacia Oenning da Silva, 2020.

linha

Já pensou em como são diversas as brincadeiras das crianças das cidades brasileiras?

Veja alguns minidocumentários do projeto Território do Brincar que indicamos a seguir.

29

MATERIAL
COMPLEMENTAR

play

Território do Brincar

Série de minidocumentários que apresenta diferentes formas de brincar em diversos estados brasileiros e sua multiplicidade de infâncias.

Os 26 minidocumentários estão disponíveis no canal do YouTube do Território do Brincar, 2016.

linha

O brincar é uma prática social e também uma experiência fundamental para entender a participação infantil. Ao brincar, as crianças afirmam a potência de seu agir no mundo, ou o que alguns sociólogos chamam de agência. Assim, a rua, o pátio da escola, o parquinho, a área de lazer do condomínio, entre outros espaços coletivos que as crianças têm acesso, são lugares onde os jogos e as brincadeiras acontecem, e as crianças têm a possibilidade de se comunicar e socializar entre pares, compartilhando saberes aprendidos na própria experiência de ser criança.

30

As culturas infantis, constituídas por repertório de jogos, brinquedos e brincadeiras, são atravessadas por marcadores sociais, como a classe, o gênero, a raça, a etnia, entre outros. A pesquisa do sociólogo Florestan Fernandes, nos anos 1940, já apontava para os marcadores sociais que envolvem as culturas infantis em um bairro central de São Paulo. Uma de suas principais contribuições foi destacar a criança como mediadora de relações entre os adultos, acolhendo famílias imigrantes à cultura brasileira.

Estudos como o de Florestan Fernandes nos apontam que o brincar acontece de forma diferente em cada contexto. Por exemplo, a ocupação do espaço da rua possui conotações distintas quando acontece na Europa ou na América Latina, ou quando se trata de uma ação realizada por populações abastadas ou pelas camadas populares de uma mesma cidade. Ainda assim, podemos observar que as crianças que residem em grandes metrópoles compartilham o esvaziamento da rua como espaço de sociabilidade infantil, em grande parte, devido à segregação espacial, que divide e exclui as camadas populares dos grandes centros urbanos, e ao rodoviarismo, dado pelo crescimento da cidade centrado em uma lógica de transporte por meio de veículos motorizados.

31

Gostaria de refletir mais sobre o brincar como forma de ocupar a cidade? Veja o texto a seguir sobre a construção coletiva de uma praça, com o protagonismo das crianças, em Vila Pindura Saia, em Belo Horizonte.

MATERIAL
BÁSICO

Amigos da Rua, Pindura Saia, 2020.

leitura

Imagem disponível no site do Facebook.

amigos da rua

O brincar como prática social de territorialização infantil

Texto de Samy Lansky e Maria Cristina Soares de Gouvêa, publicado no livro O direito das crianças à cidade: perspectivas desde o Brasil e Portugal, 2022.

32

O brincar pode influenciar processos de transformação do espaço público e de resistência de diferentes grupos sociais. Como podemos apreender do texto de Samy Lansky e Maria Cristina Soares de Gouvêa, a criação do projeto Nossa Pracinha na Vila Pindura Saia, em Belo Horizonte, é um exemplo disso. Como resultado dessa intervenção, atualmente, os moradores da Vila se apropriaram da praça como espaço de sociabilidade e convivência intergeracional. Inclusive, o poder público local reconheceu a praça formalmente como espaço público, passo importante para resistir à privatização do local por setores de interesse econômico.

A organização das crianças para planejar a transformação de espaços residuais ou subutilizados é uma realidade dos países latino-americanos. Assim, esses espaços, geralmente esquecidos ou abandonados por não serem valorizados pelo mercado imobiliário convencional ou interessantes para o poder público, vão se tornando espaços de brincar, com a construção de brinquedos coletivos, espaços de luta pelo direito à educação, com a construção de creches comunitárias, ou ainda espaços de luta pela moradia, pela terra e pela alimentação saudável, com a produção de ocupações, assentamentos e hortas urbanas.

33

Um exemplo que revela a complexidade e a riqueza da participação infantil é a experiência dos Sem Terrinha, como se identificam as crianças que fazem parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Por meio da Ciranda Infantil, espaço educativo não formal organizado pelo MST, as crianças vivenciam o movimento social desde a infância, na luta pelo exercício da sua cidadania. Nesse processo, a participação assume mais claramente um sentido de participação política voltada para a promoção da justiça social e o acesso a direitos básicos. Veja o vídeo a seguir sobre o 1º Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha, que foi um espaço organizado para promover a participação das crianças a partir das suas próprias demandas.

34

MATERIAL
BÁSICO

play

Sem Terrinha em Movimento: brincar, sorrir e lutar!

Vídeo disponível no canal do YouTube do Movimento sem Terra, 2019.

A participação das crianças em movimentos sociais e ações coletivas ocorre de diversas formas no contexto contemporâneo. As experiências de crianças do MST, de ocupações urbanas, crianças quilombolas, ribeirinhas e indígenas junto à sua comunidade são expressões de participação de crianças, no interior de famílias historicamente excluídas de seus direitos, na busca por melhores condições de vida. Nesses movimentos, as crianças participam ativamente, seja em atividades cotidianas, seja em espaços organizados próprios, estando presentes em ações de ocupação e resistência, entendendo-se como parte do coletivo. Esses exemplos revelam que as crianças não ocupam um mundo à parte, mas são sujeitos sociais no interior de famílias e coletivos, nos quais exercem e aprendem a exercer a cidadania.

35

casas

4. Como escutar as crianças?

A escuta das crianças implica aspectos éticos e metodológicos que permitem aos adultos superar seus referenciais adultocêntricos. É importante estarmos abertos às falas, aos gestos e às diferentes formas de expressão das crianças, assumindo uma postura atenta e sensível.

Entretanto, quais os princípios que fundamentam a escuta das crianças para que a participação delas seja efetiva? Veja no vídeo a seguir a reflexão do pedagogo Paulo Fochi sobre a complexidade da escuta de crianças.

mãe e filha

37

MATERIAL
BÁSICO

play

A escuta da criança e as contribuições para nosso aprendizado sobre a infância

Vídeo disponível no canal do YouTube do Composição - Formação, 2020.

Nas últimas décadas, o campo da Educação vem refletindo sobre as relações educativas e a organização da escola que colocam a criança como protagonista, o que tem sido designado como pedagogias da infância. Para Eloisa Rocha, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tais pedagogias tomam a criança em sua integralidade, levando em consideração “seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, sua cultura, suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais” (ROCHA, 2001, p. 31).

38

Essas reflexões podem inspirar a escuta sensível que defendemos aqui. Elas sugerem que a criança é um sujeito social por excelência e constitui o centro da vida escolar, de modo que as interações entre pares e as brincadeiras nas relações entre adultos e crianças são eixos para a prática pedagógica e princípios para a participação infantil. Que tal conhecer um pouco mais as pedagogias da infância? Convidamos você a ler essa breve resenha do livro “Pedagogia (s) da infância: dialogando com o passado e construindo o futuro’’, a obra revisita as reflexões de pedagogos dos dois últimos séculos destacando o papel ativo das crianças em seus processos de aprendizagem.

Resenha do livro: Pedagogia(s) da Infância: dialogando com o passado e construindo o futuro.







Texto de Marineide de Oliveira Gomes Amabille Silva Paschoim. Publicado pela revista Paideia, em 2007.

Em paralelo, em outras tendências do pensamento pedagógico, os processos de ensino e aprendizagem têm ganhado maior relevância, evidenciando a importância do engajamento das crianças nas práticas educativas. Esse é o caso das pedagogias participativas, que propõem uma ruptura com a ideia de que o conteúdo é “transmitido” para as crianças, afirmando que a aprendizagem é motivada pelo interesse próprio das crianças em um ato colaborativo. Nessa lógica, o aprender se dá a partir de uma experiência contínua e interativa, e o professor configura-se como um mediador dos processos de ensino e aprendizagem, além de observar e escutar as crianças para organizar sua prática. É essa concepção de criança competente que pode sustentar a promoção de iniciativas de participação infantil.

39

pai e filho

40

Mas como criar e promover esses espaços de participação onde elas possam, de fato, construir junto com os adultos? Fabiana Oliveira, professora em Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), nos traz algumas dicas para que a participação infantil em projetos coletivos aconteça. A criança precisa entender do que se trata a iniciativa e qual é o seu papel, sendo necessário discutir quais são as regras e os combinados estabelecidos durante todo o projeto. Também é fundamental que as relações de poder e os parâmetros para as tomadas de decisão sejam transparentes, promovendo o compartilhamento de poder entre adultos e crianças em todas as etapas, abrindo às possibilidades para que elas participem, também, dos processos de decisão.

Tratar todas as crianças sem distinção, ainda que elas se diferenciem (por idade, gênero, raça ou local onde moram), se configura como uma estratégia de grande importância, já que possibilita uma participação inclusiva, que se potencializa na medida em que se reconhece e legitima as diferenças. Considerando que, muitas vezes, as crianças reproduzem estereótipos e preconceitos em suas interações, cabe aos adultos valorizar o engajamento de crianças menores ou mais tímidas e fomentar a participação de meninas e crianças negras, buscando evitar que preconceitos raciais e de gênero sejam reproduzidos.

41

Além disso, é preciso garantir que as crianças tenham autonomia de deixar o projeto a qualquer momento, seja por algum constrangimento ou apenas por ter perdido o interesse. Por isso, é necessário compreender os diferentes tempos da criança em cada atividade proposta.

Por último, é necessário compreender que as metodologias dos projetos que almejam a participação infantil devem se adequar às perspectivas infantis. O uso dessas metodologias visa captar o ponto de vista das crianças, nos aproximando de suas formas de compreensão do mundo e de expressão. Para tanto, é possível fazer uso de métodos e instrumentos diversos que abordam as múltiplas linguagens, principalmente aquelas derivadas do campo da arte, como o desenho, a fotografia, o audiovisual, entre outras. As atividades de participação infantil que resultam em um produto construído coletivamente tendem a ser mais instigantes, uma vez que as crianças valorizam a materialidade. Essa feitura pode se dar a partir de uma dinâmica coletiva de trocas entre os pares, como em modelos de oficinas, que são, em geral, menos discursivos e mais pragmáticos.

42

Para ajudar a pensar em metodologias de escuta de crianças, veja o material produzido pelo Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP), que contém sugestões de atividades que ajudam a organizar oficinas com crianças.

Vamos ouvir as crianças?







Caderno de metodologias participativas do Projeto Criança Pequena em Foco. CECIP, 2013.

Veja, também, no filme Folha miúdas infância em terreiros, produzido por Stela Caputo, o resultado de uma experiência de escuta de crianças no contexto de vários terreiros brasileiros realizada a partir de um debate ético sobre a participação infantil em pesquisas.

43

MATERIAL
BÁSICO

play

Folha Miúdas Infância em Terreiros.

Vídeo disponível no canal do YouTube da ANPEd Nacional, 2020.

A escuta de crianças pode ter finalidades distintas. É possível realizar pesquisas junto a elas, entendendo-as como participantes de uma investigação – nunca como objeto – e, a partir das suas percepções, compartilhar visões de mundo entre as diversas infâncias participantes e os diferentes contextos onde se situam essas adultas e esses adultos pesquisadores. Vamos ver a seguir dois interessantes exemplos.

44

crianças com telefone sem fio

A pesquisa Mapeamento afetivo da cidade do Rio de Janeiro abriu espaços para escutar as crianças e fornecer insumos para a construção de políticas públicas. Essa experiência, realizada em 2019, foi formulada pelo Grupo Ambiente-Educação (GAE) e pelo Grupo Sistema de Espaços Livres (SEL-RJ), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A ideia da pesquisa foi realizar um mapa a partir da escuta de crianças do Ensino Fundamental da rede pública municipal, buscando entender as complexidades da cidade a partir do olhar infantil. Faz parte do projeto incorporar os resultados dessa participação das crianças na elaboração do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Município do Rio de Janeiro (PDS-RJ). Os resultados das percepções e desejos das crianças revelam sua percepção crítica da cidade, expondo desigualdades, mas também manifestando afetos e propostas concretas para melhorar seus territórios.

45

GAE/SEL-RJ, Resultados preliminares do Mapeamento Afetivo da Cidade do Rio de Janeiro, 2020.
Imagem disponível no site da pesquisa.

Outro exemplo de pesquisa com crianças é a investigação Infância em tempos de pandemia: experiências de crianças da Grande Belo Horizonte, realizada em 2020 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Infância e a Educação Infantil (NEPEI), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Essa pesquisa surgiu em um contexto de vulnerabilidade generalizada no mundo, frente à pandemia de Covid-19 e às medidas de isolamento, e que teve impactos mais acentuados no cotidiano de crianças e famílias das camadas populares. Nesse contexto, a pesquisa se fundamentou no reconhecimento dos direitos das crianças, entre eles, o próprio exercício do direito de ser ouvida. A partir de fotografias, áudios, desenhos, questionários e entrevistas enviadas e realizadas com as crianças participantes, buscou-se compreender as formas como as crianças vivenciavam o isolamento e como suas rotinas, relações sociais e experiências foram alteradas. Um dos resultados da pesquisa é a constatação de que crianças, através de suas falas e expressões, manifestam consciência de suas condições de vida, seus direitos, suas responsabilidades e do próprio contexto de crise sanitária, social e política que vivemos. Quando uma menina de 10 anos descreve o coronavírus como “a doença que afasta e aproxima as pessoas”, refletimos sobre a potência do olhar infantil sobre a vida no coletivo.

46

MATERIAL
BÁSICO

Clique aqui
para ler o texto

Infância e Pandemia na Região Metropolitana de Belo Horizonte: primeiras análises


Texto de Isabel de Oliveira e Silva, Iza Rodrigues da Luz e Levindo Diniz Carvalho, publicado pela FaE/UFMG, em 2021.

47

MATERIAL
COMPLEMENTAR

Trecho de Infância e pandemia: Escutar as crianças em contextos de Crise

Palestra do professor Levindo Diniz Carvalho na conferência de encerramento do III Congresso de Estudos da Infância, realizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2021.

Diante desses exemplos, cabe questionar: por que não somar as crianças nas discussões que se relacionam com a nossa vida em comum e reconhecê-las como participantes das decisões políticas?

Outras escutas com crianças se caracterizam pelo intuito de subsidiar a elaboração de políticas públicas, como é o caso do Comitê das Crianças da Cidade de Jundiaí (SP), inspirado no projeto de rede de cidades que Francesco Tonucci impulsiona, Cidade das crianças. Os participantes do Comitê representam diferentes regiões do município e são renovados anualmente. Com reuniões quinzenais, as crianças pensam juntas sugestões de melhorias para a cidade, que são enviadas posteriormente ao Prefeito, que participa de algumas reuniões e cuja gestão se compromete a materializar as ações propostas pelo Comitê em Políticas Públicas. Assista ao vídeo a seguir para conhecer um pouco mais sobre a experiência da cidade de Jundiaí no fortalecimento de políticas públicas para a infância.

48

MATERIAL
COMPLEMENTAR

A Infância em Jundiaí

Vídeo disponível no canal do YouTube do Centro de Criação de Imagem Popular, 2019.

49

Essa forma de escuta das crianças traz visibilidade frente ao resto da sociedade e dá voz às discussões e aos seus desejos sobre a cidade. Aprender a ouvir, especialmente sem induzir, é também um desafio para nós, adultos. A qualificação de equipamentos públicos dedicados às crianças e ao brincar simboliza o reconhecimento, por parte do Estado, da importância de espaços na cidade para fruição das crianças. Contudo, para que a cidade seja pensada como um espaço para as crianças, é importante, também, superar modelos funcionais e segregacionistas de cidade que levem à separação de usos e grupos etários, o que em geral se chama de “lugar para brincar”, “lugar para se educar” ou “lugar para cuidar”.

Mas, no fim, realizar escutas com as crianças e criar espaços para que elas exerçam seu direito à participação e compartilhem sua visão de mundo não é, também, uma forma de mobilizar os adultos e de criar diálogos educativos intergeracionais?

50

O projeto Inspiração da Usina da Imaginação, iniciado em 2021 com crianças e adolescentes a partir dos 7 anos de idade de diferentes contextos socioeconômicos em Florianópolis, demonstrou a potencialidade de oficinas lúdicas para as crianças se expressarem sobre como é a cidade onde querem viver. Veja no vídeo a seguir como, a partir do uso de narração, maquetes, brinquedos e brincadeiras, buscou-se compreender as ideias das crianças sobre o planejamento da “cidade das crianças”.

MATERIAL
BÁSICO

play

Cidade das crianças

Vídeo disponível no canal do YouTube da Usina da Imaginação, 2022.

Os exemplos de escutas que apresentamos até aqui utilizam diversas atividades e linguagens para se aproximarem das crianças de modo sensível. O desenho, a fotografia, as entrevistas, as maquetes, os comitês ou conselhos são apenas algumas das ferramentas disponíveis para estabelecer diálogos com as crianças das quais pesquisadores e ativistas têm utilizado.

51

Dentre outras iniciativas interessantes, vale destacar o trabalho do coletivo apē-estudos em mobilidade, que atua e pesquisa as infâncias e seu acesso à cidade na perspectiva da mobilidade urbana e educação. Os projetos do grupo combinam ferramentas diversas, que incluem as citadas anteriormente, além de rodas de conversa, mapeamentos afetivos, histórias orais, ocupações temporárias do espaço público e caminhadas, todos dentro de uma perspectiva lúdica. Em experiências como a dos Exploradores da rua, o grupo reúne estratégias como mapeamento, caminhada e jogos nas ruas, integrando-as com a perspectiva da escola conectada com o território do entorno e com ações de formação de professores, desenvolvendo uma metodologia de exploração do entorno escolar com as crianças. Veja o vídeo a seguir sobre essa rica experiência lúdica em várias escolas de São Paulo.

52

MATERIAL
BÁSICO

play

Apé-estudos em mobilidade e os “exploradores da rua”

Vídeo disponível no canal do YouTube do Centro de Criação de Imagem Popular, 2020.

Sugerimos também a leitura de outros trabalhos do Grupo Ambiente-Educação (GAE), publicados no livro Diálogos entre arquitetura, cidade e infância: territórios educativos em ação, que dialogam com as crianças reconhecendo que imaginar e brincar são também formas de participação. As ferramentas do GAE são formuladas pelo grupo como dispositivos de escuta e interlocução, os quais são aplicados também na cocriação de projetos com crianças. Ouça também um episódio do podcast em movimentos, iniciativa do grupo de estudos e pesquisas Crianças, Práticas Urbanas, Gênero e Imagem, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que, diante do contexto da pandemia de Covid-19, em 2020, buscou promover reflexões sobre as experiências de crianças e mulheres invisibilizadas nesse contexto.

53

Diálogos entre arquitetura, cidade e infância: territórios educativos em ação






Livro organizado por Giselle Azevedo, 2019.

play

Episódio #25: O traço e o desenho azul do menino - Marcia Gobbi

Nesse episódio do podcast em movimentos, Lilith Neiman conversa com Márcia Gobbi, pesquisadora e educadora com relevante produção sobre o desenho infantil, que entende essas produções gráficas como importantes e complexas criações, e comenta como as crianças têm utilizado, durante a pandemia, o desenho para refletir sobre esse momento.

linha

Até agora apresentamos situações de participação das crianças em alguns espaços formais e informais da cidade. Mas e a escola? Ela não constitui um espaço de exercício da participação?

54

A escola constitui um espaço fundamental de exercício da democracia, tanto no cotidiano da sala de aula quanto nos outros espaços escolares. O fomento à participação infantil no contexto escolar está relacionado à organização dos tempos e espaços da escola que consideram a centralidade da criança. Os materiais didáticos, os livros de história e a estética dos espaços escolares devem ter em vista a valorização da criança que habita a escola, na medida em que a reprodução de imagens eurocêntricas de crianças constitui um ato de exclusão da criança sujeito daquela escola. Cada material envolve uma escolha ética e estética da escola. No espaço da escola, também, cabe criar instâncias de escuta e tomada de decisões protagonizadas pelas crianças, integrando, ao cotidiano escolar, assembleias, votações e rodas de conversa.

Agora que temos um panorama de como escutar as crianças e das possibilidades de diálogo com elas (entre outras que possamos reinventar e criar), podemos nos perguntar: estamos dispostas e dispostos a nos surpreender com as descobertas das crianças e com as nossas próprias descobertas nesse processo? Estamos realmente abertas e abertos a nos surpreender com as manifestações das crianças?

55

Gostou do assunto e quer saber mais?

Clique aqui
para acessar o site

SITE
Plataforma de infância

A Plataforma da Criança, criada na Espanha, busca promover a participação infantil para levantar a voz de crianças e garantir que suas demandas cheguem aos responsáveis pela elaboração e implementação das políticas públicas que os afetam.

tese
TESE

No capítulo “Sobrevivendo na ilha: decidir, imaginar e participar” de sua tese intitulada Infância e movimentos sociais: participação política de crianças no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Fábio Accardo de Freitas propõe uma discussão sobre a experiência de uma oficina com crianças do MST, na qual elas simulam estar numa ilha deserta. A tese pode ser acessada pela Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais.

LIVRO

Quer aprofundar seus estudos em relação às pedagogias participativas? No livro Pedagogia-em-participação: a perspectiva educativa da associação criança (2013), Júlia Oliveira-Formosinho e João Formosinho apresentam uma proposta de pedagogia participativa socioconstrutivista para a educação na infância utilizada em Portugal desde os anos 1990.

Clique aqui para ler

DOSSIÊ

A publicação Quem está na escuta? Diálogos, reflexões e trocas de especialistas que dão vez e voz às crianças reúne uma série de artigos de pesquisadores que atuam em diferentes áreas e que se propõem a escutar as crianças. A leitura aponta para a diversidade de linguagens, brincadeiras, histórias e paisagens que permeiam o encontro com as crianças, anunciando a importância de uma educação sensível à poesia presente na expressão infantil.

LITERATURA

A república luminosa (2017), por Andrés Barba.

literatura

Um romance angustiante e grandioso a respeito da infância e violência. O aparecimento de crianças violentas de origem desconhecida perturba – e subverte – a vida de San Cristóbal, uma cidade encravada entre a selva e o rio. Vinte anos depois, uma das testemunhas revisita o episódio numa crônica recheada de fatos, evidências e especulações sobre como a cidade foi forçada a reformular sua ideia de ordem e violência, além da própria noção de infância.

CINEMA

Os Meninos da Rua Paulo

Os meninos da rua SP

O filme húngaro-estadunidense de 1969, do gênero drama, dirigido por Zoltán Fábri, foi baseado no livro homônimo de Ferenc Molnár, publicado em 1906. A história se passa em Budapeste, em 1889, e retrata um grupo de garotos na pré-adolescência, os meninos da Rua Paulo, que ocupa um playground da vizinhança.

Você pode baixar o PDF interativo deste módulo.

Se você for ler o conteúdo em telas pequenas (celulares e tablets), clique aqui.
Se você for ler o conteúdo em telas maiores ou deseja imprimir o material em folhas A4,clique aqui.

Referências bibliográficas

  • ABRAMOWICZ, Anete. Crianças e guerra: as balas perdidas! Childhood & Philosophy, v. 16, 2020
  • APĒ – ESTUDOS EM MOBILIDADE. Exploradores da rua. Apēprojetos. Educação. 2022.
  • AZEVEDO, Giselle (org.). Diálogos entre arquitetura, cidade e infância: territórios educativos em ação. Rio de Janeiro: UFRJ; FAU; PROARQ, 2019.
  • CARVALHO, Levindo. Infância, brincadeira e cultura. ANPED, 2008.
  • COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
  • DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • FRIEDMANN, Adriana. Brincadeira: a linguagem da infância. SESC São Paulo. 29 mar. 2012.
  • GALZERANI, Maria Carolina. Imagens entrecruzadas de infância e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. In: FARIA; Ana Lúcia Goulart de; DEMARTINI, Zelia de Brito Fabri; PRADO, Patrícia Dias (org.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. Campinas: Autores Associados, 2005. p. 49-68.
  • GOBBI, Márcia et al. O direito das crianças à cidade: reflexões sobre o inadiável. In:______(org.). O direito das crianças à cidade: perspectivas desde o Brasil e Portugal. São Paulo: FEUSP, 2022. p.17-34.
  • GOMES, Marineide de Oliveira e Paschoim, Amabille Silva. Dialogando com o passado, construindo o futuro. Paidéia (Ribeirão Preto) [online]. 2007, v. 17, n. 37 [Acessado 16 Setembro 2022] , pp. 273-276.
  • GRUPO AMBIENTE-EDUCAÇÃO – GAE. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura – PROARQ, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • JUNDIAÍ. Prefeitura Municipal. Comitê das Crianças 2022. 2022.
  • JUNDIAÍ. Prefeitura Municipal. Mundo das Crianças. O mundo. [s.d.].
  • OLIVEIRA, Fabiana de. Reflexões a respeito de uma experiência de participação infantil no Brasil envolvendo os espaços urbanos e a perspectiva das crianças. Revista Portuguesa de Educação, v. 30, n. 1, p. 157-179, 2017.
  • OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia; KISHIMOTO, Tizuko Morchida; PINAZZA, Mônica Apezzato (Orgs.). Pedagogias(s) da infância: dialogando ocm o passado: construindo o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007
  • ROCHA, Eloisa Acires Candal. A pedagogia e a educação infantil. Revista Brasileira de Educação, n. 16, 2001.
  • SARMENTO, Manuel. Visibilidade social e estudo da infância. In: VASCONCELLOS, Vera; SARMENTO, Manuel (org.). Infância (in)visível. Araraquara: Junqueira & Marin, 2007. p. 25-49.
  • SILVA, Isabel; LUZ, Iza; CARVALHO, Levindo. Infância e Pandemia na Região Metropolitana de Belo Horizonte: primeiras análises. Belo Horizonte: UFMG; FaE; NEPEI, 2021.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
  • TAFT, Jessica K. “Adults talk too much”: Intergenerational dialogue and power in the Peruvian movement of working children. Childhood, v. 22, n. 4, p. 460-473, 2015.
  • TREVISAN, Gabriela et al. Infância, espaço público e participação: a abordagem do território de aprendizagem. In: GOBBI, Márcia et al. (Org.). O direito das crianças à cidade: perspectivas desde o Brasil e Portugal. São Paulo: FEUSP, 2022. p.35-55.
  • USINA DA IMAGINAÇÃO. Inspiração.[s.d.].

Módulo 4: Políticas públicas, educação e contextos de participação

cliquelaranja
roda de crianças

O que você vai ver aqui?

Neste módulo final vamos discutir a importância das políticas públicas para a concretização do direito à cidade, compreendendo as crianças como cidadãs e como sujeitos integrais. Para tanto, serão discutidos o conceito de intersetorialidade e a centralidade da escola na vida das crianças. Destacamos também algumas experiências de participaçãodas crianças na construção de políticas públicas.

As perguntas orientadoras deste módulo são:

  • Como se articulam diferentes políticas para a infância no território?
  • Como a cidade pode cuidar das crianças?
  • Como as crianças podem participar na construção de políticas públicas?

1.Introdução

Neste último módulo do curso, buscamos retomar discussões que já foram temas em outros módulos, a partir de exemplos concretos de diferentes contextos. Iremos tratar do conceito de intersetorialidade para pensar sobre as redes criadas na cidade em torno das infâncias e sobre o papel das políticas educacionais nos territórios.

Antes de começarmos, é bom lembrar: no Módulo 1, vimos como as concepções de infância no Brasil e no mundo foram construídas historicamente. Já no Módulo 2, destacamos como as cidades podem ser um lugar onde as crianças constroem relações e aprendem sobre o mundo. No Módulo 3, trouxemos o conceito de participação infantil para o centro do debate, destacando a importância de promover esse direito e afirmando que as crianças podem e devem participar da vida social e política na cidade.

Após esse percurso, o Módulo 4 propõe refletir sobre como diferentes sujeitos coletivos estão envolvidos na tarefa de elaboração de políticas públicas com a participação infantil, seja representados por setores do Estado ou por movimentos da sociedade civil organizada. Nos parece imprescindível também destacar a centralidade da escola nesse processo, uma vez que é a principal instituição de atendimento à infância e pode assumir papel de destaque na articulação local de políticas públicas nos diversos territórios.

4

escorregador

5

2.Como se articulam diferentes políticas para a infância no território?

Para começarmos essa conversa, vejamos o caso da menina Mariana, uma personagem fictícia, inspirada em experiências concretas de crianças que vivem nas periferias das grandes cidades brasileiras.

menina com megafone

O Caso de Mariana

Mariana é uma menina negra de 10 anos e junto com seus dois irmãos, Paulo (6 anos) e André (4 anos), vai diariamente à escola que fica próxima à sua casa, em um bairro periférico de Belo Horizonte. Ela chega quase sempre atrasada à escola, pois tem como primeira tarefa do dia arrumar o café, cuidar dos seus pertences e de seus irmãos. Os três são criados pela avó materna, pois a mãe de Mariana faleceu quando ela tinha 5 anos. A avó apresenta dificuldade de mobilidade física, o que faz com que Mariana, a neta mais velha, assuma mais responsabilidades nas tarefas de casa e na criação dos irmãos.

Boa parte da rotina de Mariana é tomada pelos cuidados com seus irmãos, compartilhados com a escola, já que frequentam o horário de atendimento ampliado, o chamado tempo integral, permanecendo nela nos turnos da manhã e da tarde. Ali eles se alimentam de quatro refeições diárias. Mariana teve acesso à dose vacinal de reforço contra a Covid-19, em função da presença de profissionais de saúde na escola, após autorização por escrito da avó. Ela também já recebeu em sua agenda escolar um recado dos profissionais do Posto de Saúde para a avó, lembrando-a das consultas médicas rotineiras. Por vezes, a menina chega em casa contando à avó que estiveram na escola algumas pessoas “de fora”, para falar sobre o combate à exploração do trabalho infantil, à violência sexual, ao risco do consumo de drogas, entre outros assuntos.

Nas idas e vindas a pé no próprio bairro, Mariana conhece a maior parte das pessoas. O dono da vendinha conversa com ela quase todos os dias, enquanto a menina fica de olho nos bombons atrás do vidro do balcão.

Por falar em alimentação, Mariana gosta de almoçar com seus amigos na escola, principalmente quando tem frango assado, carne moída ou macarrão. As funcionárias da cantina a deixam repetir, pois ela nunca deixa sobrar nada no prato. Enquanto almoça, a turma fala do que rolou nas aulas, faz vídeos no celular e comenta sobre o que acontecerá no dia seguinte.

Andando pela rua do seu bairro, Mariana percebe que as esquinas são vigiadas pelas pessoas ligadas ao tráfico de drogas. A sensação de cansaço é vivida por ela ao final do dia, pois, ao chegar em casa, primeiro auxilia nas tarefas escolares dos irmãos e, em seguida, tenta realizar as suas.

Aos finais de semana, Mariana tenta dormir até mais tarde, mas quase sempre é acordada pelos irmãos, ou pelo som alto que vem da casa do vizinho. Eles brincam próximo de casa, na quadra do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), com a permissão do vigia que toma conta do espaço. Aos domingos, a avó chama para ir à pracinha do bairro vizinho e à igreja. Semana passada, ela esteve lá e percebeu o escorregador quebrado e enferrujado, justamente o brinquedo mais legal. Ela ficou pensando quem poderia ter feito isso.

Afinal, como a vida de Mariana nos ajuda a refletir sobre a importância de políticas públicas para a infância? De que forma essa breve descrição de seu cotidiano contribui para entender a relação entre essas políticas e a presença e circulação de crianças pela cidade?

8

A partir da década de 1980, diferentes grupos sociais passaram a demandar do poder público a ampliação da cidadania através do acesso a direitos e da construção de políticas públicas de proteção social e cuidado. Buscava-se romper com a estrutura autoritária anterior, em que a maior parte da população não tinha acesso a direitos básicos, como educação e saúde. Com a redemocratização no Brasil, sujeitos sociais coletivos, como negros, indígenas, mulheres e crianças, afirmavam sua condição de atores políticos na defesa de seus direitos, num período intenso de debates e exercício da democracia, que culminou com a Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, e a elaboração e aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Como vimos no Módulo 1, o ECA foi um marco histórico, não apenas pela afirmação da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, mas também pela sua intensa participação na formulação e aprovação do documento, considerado um dos mais avançados do mundo. Vimos também como esse aparato legal passou a ser a referência central para a construção de políticas públicas voltadas às crianças brasileiras.

9

casas

10

Talvez você já tenha visto fotos ou ouvido histórias de seus pais e avós sobre como era difícil conseguir vagas em escolas, os responsáveis pelas crianças tinham que dormir nas filas para garantir a matrícula, muitas vezes, distantes dos locais de moradia. A escola não era um direito de todos, mas sim privilégio de alguns. O exemplo de Mariana e uma análise sobre a oferta da educação pública no país nos revelam que, ainda que muitas famílias já não vivam a dificuldade de antes para encontrar uma vaga na escola, uma série de desigualdades persistem na garantia do direito à educação, no que tange à qualidade dos espaços, ao grau de investimentos públicos e à valorização profissional.

A Constituição de 1988, que estabeleceu a Educação como direito e determinou a obrigação do Estado em prover escolas públicas e gratuitas, também estabeleceu as demais políticas destinadas ao atendimento das crianças, que foram divididas entre diferentes pastas, com suas respectivas atribuições. À Assistência ficou o dever de assistir, à Saúde , prevenir e tratar, à Segurança, proteger, assim como os demais setores do Estado, cada qual com seus papéis demarcados. A concretização dessas políticas para as populações se dá a partir dos programas e equipamentos públicos.

Em Belo Horizonte, por exemplo, foi durante os anos 1990 que a cidade experimentou um grande investimento orçamentário na descentralização dos equipamentos públicos, tornando as políticas mais próximas dos cidadãos. Hoje, muitas famílias como a de Mariana são cadastradas no projeto de vínculo familiar do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) da sua região e são atendidas no Centro de Saúde do bairro. Quando desejam, podem frequentar atividades culturais e oficinas do Centro Cultural mais próximo, indo a pé, pegando a linha do transporte público ou até mesmo conseguindo uma carona. Sabemos que a presença de equipamentos públicos próximos ao local de moradia não é generalizada no território. Mas será que essa presença é suficiente para garantir os direitos de Mariana e das demais crianças do país?

11

Como vimos no Módulo 1, parece que o caminho que historicamente tomamos foi de distanciar a infância de determinadas pautas, como o direito à cidade, como se ela não fosse o lugar da vida comunal, em conjunto, compartilhada coletivamente por crianças, jovens, adultos e idosos. Percebe-se como essa ideia é forte o suficiente para excluir historicamente as crianças e outras minorias, como as mulheres, os idosos, a população negra e indígena, de processos participativos na cidade, além de não as conceber como cidadãs de direitos e sujeitos integrais. Veja no vídeo a seguir, produzido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, como as crianças também elaboram sobre o que é política e democracia.

12

MATERIAL
BÁSICO

play

Crianças falam sobre política e democracia

Vídeo disponível no canal do YouTube da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, 2022.

No mundo capitalista pós-Revolução Industrial, os processos de burocratização, racionalização e institucionalização provocaram um distanciamento da dimensão subjetiva da vida. Isso afetou as relações sociais de toda ordem, inclusive as formas políticas das sociedades se organizarem. As diferenças que atravessam os sujeitos foram invisibilizadas por um mundo-padrão, globalizado e legitimado em torno dos valores das elites urbanas e classes privilegiadas. Ao mesmo tempo, em um intenso processo de luta por direitos, essas populações vêm, ainda que lentamente, alcançando importantes conquistas. Por exemplo, no caso do acesso à educação: se até 1988 as famílias disputavam vagas em escolas frequentemente distantes do território, a partir do recenseamento escolar, houve uma inversão da política, e as escolas deveriam ser construídas e distribuídas de acordo com os locais de moradia das crianças, o que definiu uma relação entre escola e território.

13

Veja no vídeo a seguir como o professor e historiador Peter Burke descreve a influência desses processos na dimensão e na organização do cuidado nas sociedades contemporâneas.

MATERIAL
COMPLEMENTAR

Quem cuida de quem?

Vídeo originalmente disponível no canal do Vimeo do Instituto CPFL, 2011.

Com o aumento significativo das desigualdades sociais, frequentemente ouvimos falar que as políticas públicas ou iniciativas dos setores do governo são reservadas às camadas populares. Vale a pena parar para pensar quais seriam os argumentos que sustentam a prioridade no atendimento. Isso ocorre em função das incapacidades como cidadãos e sujeitos sociais? Ou tudo isso é fruto de processos desiguais e excludentes, que os impossibilitam adquirir e obter as condições necessárias para as demandas da vida? A história nos aponta que o segundo argumento é o mais correto, mas o primeiro insiste em prevalecer no imaginário social, contribuindo inclusive para gerar uma concepção de criança pobre, em que a ela e à sua família é atribuído o rótulo de “carente”.

14

Como vimos no Módulo 1, a história da infância no Brasil é atravessada pela violência da colonização portuguesa que marcou gerações de crianças e adolescentes indígenas e negros. O processo abolicionista no país foi seguido da construção de uma série de documentos legais e práticas de penalização e criminalização dos chamados “menores”, vistos como marginais, que se tornaram muitas vezes órfãos e abandonados, perante a ausência do Estado. As décadas seguintes foram, portanto, marcadas pela total ausência de medidas de proteção social a essas famílias, as quais não tiveram garantido o acesso a direitos humanos básicos que reduzissem as desigualdades que hoje observamos no território. Ao contrário, após a abolição, afirmou-se uma política que criminaliza as populações negras e pobres em suas expressões culturais, formas de sociabilidade e condições de vida.

15

Nos anos 1980, especialmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, emerge uma concepção de políticas sociais como direito de populações marginalizadas e dever do Estado. Tais políticas deveriam dar-se em diálogo com as populações assistidas, através da construção de canais de representação democráticos, presentes nos municípios e territórios, como o caso do Conselho Tutelar. No entanto, tal avanço convive com a persistência da visão estigmatizante das populações marginalizadas, como negros e pobres, associadas à carência ou à criminalidade. A luta pelos direitos humanos nos mostrou, desde então, a urgência de uma reparação histórica à população excluída dos seus direitos básicos. Assim, a frequente associação que se fazia entre a vida das camadas populares com ideias de privação e restrição era, na verdade, o resultado de uma negação histórica de direitos atravessada por relações étnico-raciais de opressão.

16

Em um movimento de transformação da sociedade, a mobilização social conquistou a compreensão de que direitos humanos e políticas públicas são construções constitucionais que cabem a todos os cidadãos, independente de classe, grupo etário, raça, etnia, etc., apontando para a importância de um processo político de mitigação das injustiças cometidas no passado contra determinadas comunidades ou grupos sociais. Assim, ao lado da afirmação da universalidade de direitos, foram sendo construídas políticas específicas, dirigidas a determinados grupos sociais, de combate às desigualdades de acesso. Tal é o caso de políticas de equidade nas áreas de saúde, educação e assistência dirigidas a minorias como mulheres, negros, indígenas, quilombolas e população LGBTQIA+.

17

triangulo minhoca

Veja na coletânea a seguir, organizada por pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGE/PROGEPE) da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), uma série de debates que pautam a temática acerca das relações étnicas e raciais na história de crianças e adolescentes brasileiros.

Criança, Adolescente e Racismo: 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente






Livro organizado por Djalma Lopes Góes, Daniela Pinheiro de Oliveira, Flávia Abud Luz e Mônica Abud Peres de Cerqueira Luz, 2022.

Fica mais fácil agora compreender que a superação de uma perspectiva paternalista e protecionista dos direitos das crianças deve passar pela construção de canais de escuta e diálogo com os sujeitos das políticas? Todos eles devem ser parte das políticas, participantes, e não meros destinatários. A pandemia da Covid-19, por exemplo, com seus efeitos dramáticos, permitiu a construção de políticas públicas de escuta e construção de canais de participação. Veja esse aspecto em um trecho da palestra da médica do Sistema Único de Saúde, o SUS, em Belo Horizonte, Stella Araújo, no qual ela cita iniciativas que envolveram a participação de diferentes sujeitos na vivência da pandemia.

18

MATERIAL
BÁSICO

play

O direito à Educação Infantil na interface saúde e educação: diálogos intersetoriais

Vídeo originalmente disponível no canal do YouTube do Fórum de Educação Infantil Zona da Mata, 2022.

Núcleo de Apoio e Acompanhamento para Aprendizagem (NAAPA)




Conheça um Portal de Atendimento Online que acolhe estudantes, professores e gestores desde o início da pandemia, desenvolvido a partir de iniciativas da Rede Municipal de Educação do município de São Paulo

19

Voltemos à história de Mariana. Ao mesmo tempo em que ela tem uma centralidade em sua casa, associada à responsabilidade de cuidar, ela é um sujeito que também se encontra em uma relação de alteridade com outros adultos, como a avó, os adultos da escola e os demais conhecidos da rua.

Lembrem-se que a infância é marcada por íntimas relações de cuidado, que ora adquirem sentidos de proteção, alteridade e autonomia, ora se configuram na dependência de alguém (outro sujeito, geralmente um adulto ou pessoa mais velha). Quando olhamos a produção da ideia de infância em diversos contextos e culturas do nosso país, ficam nítidos os contrastes sobre tais relações de cuidar e ser cuidado/a. Esse debate já foi iniciado no Módulo 1, quando nos referimos à diversidade da infância como experiência social, em conexão com as questões intergeracionais.

Outro aspecto relevante é sobre a infância ser um período etário curto e breve em relação às demais fases da vida. Políticas voltadas para a infância precisam considerar a urgência desse ciclo da vida, tanto pela intensidade com que a criança adentra o mundo social à sua volta quanto pelo curto período de tempo que se apresenta como criança no mundo. O tempo da infância é diverso, para além de uma marcação etária, frente às subjetividades das crianças.

20

Percebemos no cenário político brasileiro o seguinte paradoxo: ao mesmo tempo em que há argumentos fortes que fundamentam o investimento na primeira infância em termos de políticas públicas, as rupturas e descontinuidades de iniciativas voltadas para esse público são frequentes e já se fazem uma tradição em nosso país. Assim, é importante considerar a infância desde o planejamento até a execução de políticas e ações governamentais para que não haja desconexão entre o atendimento e a realidade mais imediata das crianças.

arvore

21

MATERIAL
BÁSICO

Clique aqui
para acessar o site.

Observatório do Marco Legal da Primeira Infância


Visite o site do Observatório do Marco Legal da Primeira Infância (Observa), uma iniciativa da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) e da Comunicação e Direitos (ANDI) que apresenta acesso a indicadores, biblioteca e levantamento de Planos pela Primeira Infância.

Primeira Infância Primeiro




O site Primeira Infância Primeiro, elaborado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, apresenta uma série de informações, cursos e recomendações para a priorização de crianças de 0 a 6 anos nas políticas públicas.

Núcleo Ciência pela Infância



Confira também as publicações do Núcleo Ciência pela Infância sobre o tema. Na publicação Da ciência à prática: os programas de apoio ao desenvolvimento infantil na América Latina, produzida pela Fundação Bernard Van Leer, foram reunidos programas de Norte a Sul do Brasil e também de outros países, como Chile, Uruguai, Peru, Cuba, Colômbia e Moçambique.

22

Conforme mencionado no Módulo 1, a intersetorialidade representa um avanço na construção de políticas públicas integradas e que dão centralidade aos sujeitos. Esse conceito parte do nível de gestão pública que dá importância e sentido à articulação e à integração de ações, programas, projetos e políticas referentes às responsabilidades do Estado perante a sociedade, considerando os direitos constitucionais de proteção social e cuidado.

Agora tente imaginar como Mariana percebe a cidade em que vive. Até onde ela circula e brinca pela cidade? No seu cotidiano, ela pode, junto com sua família, conhecer e circular por outros espaços da cidade? Ou fica restrita ao território mais próximo da sua casa? É possível construir políticas através da articulação entre secretarias para a promoção da circulação de crianças por outros espaços de lazer na cidade? E para a qualificação dos espaços que já existem? Por exemplo, retomando quando Mariana esteve na pracinha com o brinquedo quebrado: a manutenção dos brinquedos em locais públicos, na verdade, da praça como um todo, no caso do município de Belo Horizonte, é uma responsabilidade conjunta das Secretarias de Lazer, Política Urbana e Meio Ambiente. Essas e outras dimensões da vida na cidade ficariam mais nítidas se Mariana fosse atendida por políticas intersetoriais.

23

triangulo triangulo

Pesquisadores e profissionais de diversas áreas têm defendido a relevância de políticas intersetoriais e integradas. A professora Jaqueline Moll fala sobre como o Programa Mais Educação, implementado entre os anos de 2007 e 2016, induziu experiências de Educação em Tempo Integral articuladas às políticas de saúde, assistência, cultura e planejamento urbano em diferentes municípios do país. Isso significa colocar sujeitos, práticas e saberes locais em interação. Infelizmente, a recente descontinuidade dessa iniciativa se deu com a sua substituição pelo Programa Novo Mais Educação, centrado no reforço escolar, que acabou por romper com aquilo que estava ainda em construção: a ampliação do tempo da escola pelo viés de uma política intersetorial de Educação Integral.

24

MATERIAL
BÁSICO

play

Jaqueline Moll fala sobre a construção de programas em Educação Integral

Vídeo originalmente disponível no canal do YouTube do Centro de Referências em Educação Integral, 2013.

A prática intersetorial na gestão pública está alinhada com a ideia da criança como um sujeito integral. Sujeito que não é somente aquele cidadão de direitos sociais garantidos em lei – essas do plano teórico –, mas que depende de que essas leis se convertam em ações ou práticas diversificadas para condições favoráveis à vida.

No vídeo a seguir, os entrevistados Vital Didonet e Rodrigo Mindlin discutem a perspectiva da criança como sujeito integral e a necessidade da realização de ações entre os diversos setores da gestão pública para uma agenda da infância.

25

MATERIAL
BÁSICO

play

Primeira infância e intersetorialidade

Vídeo originalmente disponível no canal do YouTube do Centro de Criação de Imagem Popular, 2019.

Outra experiência que promoveu a interconexão entre diferentes setores que promovem políticas para a infância e não poderia deixar de ser citada é o Programa Bolsa Família (PBF), do Governo Federal. A iniciativa foi construída pautando-se em um cadastro único das famílias, seguindo uma política de distribuição de renda integrada a outras políticas. Essa integração é fundamental para toda política intersetorial, justamente porque conecta outras instâncias da vida das crianças e das famílias.

26

No vídeo a seguir, a professora Flávia Pires discute o Bolsa Família pelo olhar das crianças, anunciando a responsabilidade delas na execução dessa política. Ao investigar a chamada “Geração Bolsa Família”, sua pesquisa revelou como o PBF evidenciou a participação infantil das classes pobres e extremamente pobres na gestão do uso do recurso, através de diferentes formas negociadas no âmbito das famílias. Isso não é pouca coisa quando nos referimos a um Programa que beneficiou aproximadamente 14 milhões de famílias, em um país atravessado tão fortemente pelas desigualdades.

crianca

27

MATERIAL
BÁSICO

play

I Simpósio Saúde mental, crianças e infâncias (Palestra: Profa. Dra. Flávia Ferreira Pires)

Vídeo originalmente disponível no canal do YouTube de Cazuza Carlos, 2018.

Tanto o Programa Mais Educação quanto o Bolsa Família foram importantes iniciativas que demandaram diálogo em nível nacional entre as políticas já existentes. Por exemplo, no caso do Mais Educação, representantes do setor educacional, do esporte, do lazer, da cultura, etc. passaram a fazer parte de comitês municipais intersetoriais. Em alguns estados da federação, universidades públicas e privadas compuseram tais comitês, estimulando o diálogo, a participação e o compartilhamento de experiências. Já no caso do PBF, a distribuição de renda foi o indutor necessário para o acesso a outros direitos, como a vacinação, o acesso à escola, a melhoria nas moradias, etc..

28

No nível municipal também é possível articular políticas de forma intersetorial voltadas para a infância. Uma iniciativa muito representativa nesse sentido em Belo Horizonte foi o Programa BH Cidadania. Concebido em 2001, o Programa foi lançado durante as reformas político-administrativas da Prefeitura de Belo Horizonte, referentes aos anos de 2000/ 2001 e de 2005. Sua principal função foi articular as ações já existentes nas diversas políticas instituídas no Município com o objetivo de organizá-las, favorecendo a articulação intersetorial e garantindo a presença e a intervenção do Poder Público Municipal, mediante a oferta de serviços à população de áreas socialmente críticas.

A partir do eixo “Educação” do Programa, por exemplo, foi dada ênfase à Educação Infantil, determinando a implantação das Unidades Municipais de Educação Infantil, conforme os territórios de maior vulnerabilidade apontados na fase de mapeamento do Programa. Voltando ao caso de Mariana, ela pode ser considerada um exemplo dentre os alunos dessas escolas, elaboradas e construídas em função de um mapeamento da demanda feito no âmbito do BH Cidadania. Além disso, a oferta do Programa Escola Integrada, frequentado por Mariana e que será discutido adiante, foi uma das estratégias citadas do BH Cidadania para fomentar a gestão compartilhada, a noção ampliada do território e da intersetorialidade.

29

Quando nos referimos à gestão compartilhada, trata-se da introdução de novos arranjos de gestão das políticas, com sistemas abertos de coordenação e condução de ações articuladas em redes de colaboração. Dessa forma, torna-se possível mobilizar e promover a participação, fazendo-a acontecer na vida das crianças.

Ao avançar na gestão compartilhada, o reconhecimento do território como central na vida das crianças nada mais é que uma consequência à construção de políticas para a infância que considerem a criança em sua integralidade. O território forma subjetividades e constrói modos de vida e sociabilidades, ao mesmo tempo em que também informa sobre as experiências concretas das crianças. A quadra do CRAS, a praça do bairro e a vida comunitária da igreja são exemplos de elementos do território onde Mariana vive e que dizem sobre como ela experimenta a cidade. Por outro lado, a presença do tráfico de drogas indica a necessidade de avanço no desenvolvimento de políticas de saúde, segurança, geração de renda, etc. Você também se vê nessa cidade de Mariana?

30

O geógrafo brasileiro Milton Santos descreveu o território como um espaço que está em processo, experimentando mudanças no conteúdo e na forma. Isso quer dizer que o território não deve ser pensado como uma dimensão estática: os sujeitos se relacionam e conformam redes de solidariedade e laços afetivos que estão sempre construindo outras formas de viver. As materialidades presentes na casa de Mariana, no chão de terra ou no asfalto de seu bairro, nos jardins (ou na ausência deles), nos ônibus, entre outros, fazem parte da composição de seu território.

31

linha milton nascimento

O legado de Milton Santos: um novo mundo possível surgirá das periferias


Reportagem de Mayara Paixão, publicada pelo Brasil de Fato, em maio de 2019.

linha

Conforme Milton Santos defendia, o território também se conforma a partir de relações de poder em disputa e de sentimentos de pertencimento e identidade. Para muitas coletividades, como quilombos, comunidades indígenas, assentamentos pela reforma agrária e ocupações urbanas, o território é também um espaço de resistência urbana e rural, e instrumento de luta e transformação social. O território é, portanto, uma importante chave de conexão entre a política pública idealizada e, muitas vezes, influenciada por concepções hegemônicas de infância e de cidade com a cultura local onde essa política vai ser executada.

32

O debate sobre a intersetorialidade também deve incidir em uma articulação territorializada da ação do Estado. Cabe a nós avançar neste debate, superando as abordagens que muitas vezes estigmatizam sujeitos e territórios em situação de vulnerabilidade, reconhecendo a coexistência das potências e das precariedades dadas pelas diversidades e as desigualdades no espaço.

A pandemia da Covid-19 trouxe com muita força a necessidade de uma política intersetorial, diante de demandas excepcionais e urgentes. A necessidade de pensar a criança em sua integralidade ocupou o centro de alguns debates, destacando a importância do espaço da escola para além do aprendizado, mas também como o lugar do encontro, da socialização e a porta de entrada de políticas e direitos para a infância.

33

Com o fechamento das escolas, a relação entre o direito à educação e o direito à alimentação, por exemplo, tornou-se ainda mais visível. Para além das políticas públicas municipais e estaduais de distribuição de cestas básicas, vimos uma série de iniciativas locais, autogestionadas pela comunidade escolar em parceria com outros atores do setor público, lideranças comunitárias e organizações sem fins lucrativos, a fim de garantir a distribuição de alimentos da merenda escolar e cestas básicas. Ainda, no quadro do ensino remoto, não eram raros relatos de agentes de saúde que circulavam pelo território no atendimento às famílias e ofereciam suporte para a realização ou impressão de atividades escolares. A formação e o fortalecimento de redes de apoio local no atendimento às crianças e aos adolescentes durante a pandemia elucidou ainda mais como a construção cotidiana do trabalho intersetorial é um dos grandes desafios da gestão da política pública nos territórios.

O trabalho intersetorial pode ser instigante ao construir práticas em torno de uma agenda comum e integradora, como forma de compartilhar saberes e desafios nos territórios educativos, entre todos os moradores e profissionais que se vinculam às crianças. Alguns setores envolvidos com a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes têm desenvolvido guias, materiais de trabalho, práticas e ações como forma de sensibilizar e estimular práticas intersetoriais. Veja a seguir alguns materiais que destacam a importância do trabalho intersetorial.

34

Escola: lugar de proteção: guia de orientações e encaminhamentos





Guia publicado pela Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2019.

Guia para orientar ações intersetoriais na primeira infância





Guia publicado pelo Ministério da Saúde, 2018.

minhoca

35

3 Como a cidade pode cuidar das crianças?

Quando pensamos na pergunta que inaugura essa parte do Módulo 4, pode parecer estranha a ideia de uma cidade cuidar de crianças, não é verdade? Chegando próximo ao momento final do curso, não poderíamos deixar de fazer esta pergunta: como é possível uma cidade, especialmente ao nos referirmos às grandes metrópoles, cuidarem e se importarem com as crianças?

A pandemia evidenciou como o cuidado como dimensão da vida humana era pouco tratado pelas políticas públicas. Cuidar e ser cuidado/a continua sendo predominantemente um assunto particular e do âmbito doméstico, notadamente atribuído à mãe ou à figura feminina, apesar de ganhar relevo nas urgências, como nas que vimos, com a impossibilidade de continuidade da vida humana nos dois primeiros anos de pandemia. Fica mais claro agora por que o cuidado parece ser um tema ainda distante dos diálogos entre infância, cidade, participação e políticas públicas?

Lembre-se que Mariana não chegou aqui por acaso, pois ela nos estimula a pensar em sujeitos concretos e nas condições da infância urbana. A realidade da menina nos provoca a dar dimensões mais ampliadas sobre as relações entre a criança e a cidade, seja no entorno mais próximo, nos territórios ou na cidade. Mariana, sendo uma criança que cuida, estuda e circula pelo espaço da rua, altera a lógica prescrita do cuidado, especialmente aquele relacionado ao período etário da infância.

MATERIAL
COMPLEMENTAR

GregNews – Cuidado

Em um dos episódios do programa GregNews, gravado durante a pandemia, perceba como a equipe da produção discutiu a questão do cuidado

Vídeo originalmente disponível no canal do YouTube da HBO Brasil, 2020.

A pandemia evidenciou como o cuidado como dimensão da vida humana era pouco tratado pelas políticas públicas. Cuidar e ser cuidado/a continua sendo predominantemente um assunto particular e do âmbito doméstico, notadamente atribuído à mãe ou à figura feminina, apesar de ganhar relevo nas urgências, como nas que vimos, com a impossibilidade de continuidade da vida humana nos dois primeiros anos de pandemia. Fica mais claro agora por que o cuidado parece ser um tema ainda distante dos diálogos entre infância, cidade, participação e políticas públicas?

Lembre-se que Mariananão chegou aqui por acaso, pois ela nos estimula a pensar em sujeitos concretos e nas condições da infância urbana. A realidade da menina nos provoca a dar dimensões mais ampliadas sobre as relações entre a criança e a cidade, seja no entorno mais próximo, nos territórios ou na cidade. Mariana, sendo uma criança que cuida, estuda e circula pelo espaço da rua, altera a lógica prescrita do cuidado, especialmente aquele relacionado ao período etário da infância.

37

Embora a rua seja considerada para muitas famílias o lugar do perigo e onde se deve evitar permanecer, Mariana está lá, vista sempre no trajeto escola-casa, se encontrando com as pessoas do seu território, brincando e participando da vida comunitária. Sua experiência revela a pluralidade das infâncias como experiência social.

Se estivéssemos dizendo de outras Marianas, moradoras de áreas privilegiadas da cidade, as pautas seriam outras, não menos instigantes e necessárias. Parece nítido o contraste entre a vida de Mariana e outras crianças que vemos na cidade. Ao insistirmos na ideia de infância na dependência de espaços e instituições (notadamente escolares), limitamos os encontros das crianças. A complexidade da vida contemporânea acabou por afastar crianças de outras crianças, segregando espaços como sendo de determinados públicos e incluindo pouco as crianças como participantes, usuárias e habitantes da mesma cidade, na relação com os adultos por elas responsáveis.

MATERIAL
COMPLEMENTAR

Depois da fronteira: a vida das crianças imigrantes

A equipe do Caminhos da Reportagem traz relatos sobre famílias de imigrantes venezuelanos que buscam em Pacaraima e Boa Vista, Roraima, uma vida mais digna.

Vídeo disponível no canal do YouTube da TV Brasil, 2019.

38

Possibilitar que as cidades sejam também das crianças é reconhecer os lugares onde elas estão e por onde transitam, reformulando sentidos e articulando espaços urbanos e equipamentos públicos. A ideia de cidade educadora é aquela que coloca a cidade como lugar que acolhe, que ensina, que cuida, que promove o encontro com o outro. O termo inspira uma série de projetos urbanos em diferentes cidades.

O conceito de cidade educadora foi cunhado pela UNESCO como uma proposta que aparece no texto “Aprender a ser” (Faure, 1974). No entanto, só é retomado a partir dos anos noventa, quando o conceito é acolhido por muitas cidades do mundo após o primeiro “Congresso Internacional de Cidades Educadoras”, celebrado em 1990, em Barcelona, Espanha. (...) Promover a ideia de que a cidade – essencialmente quando sabe manter-se à escala humana – contém um imenso potencial educativo, com seus centros de produção, suas estruturas sociais e administrativas e suas redes culturais, não só pela intensidade dos intercâmbios de conhecimentos que são ali realizados, mas também pela escola de civismo e de solidariedade que ela constitui. (GOMEZ, SANCHEZ, FLOREZ, 2019, p. 19)

Assumir a cidade como educadora é também assumir as crianças como protagonistas desse processo, abrindo espaços para que suas vozes sejam ouvidas e para que sejam reconhecidas como coconstrutoras da sociedade. Na medida em que Mariana cuida e é cuidada, ela cria noções sobre sua forma de viver no bairro e na cidade. Percebam como o projeto a seguir anuncia essa questão de uma maneira sensível à importância das crianças na cidade.

39

MATERIAL
BÁSICO

Clique aqui
para ler o texto

Urban95


A Urban95 é um projeto da Bernard van Leer que convida líderes, gestores públicos, arquitetos e urbanistas a pensar as cidades sobre a perspectiva de quem tem 95 cm – a altura média de uma criança de 3 anos.

Assim, as crianças são também mediadoras das relações nas comunidades que se inserem, de modo que as culturas infantis emergem entre as próprias crianças, a partir de um território compartilhado.

pipoqueira

40

Vejam como a iniciativa abaixo, Cidade de 15 minutos, considera a importância de dar atenção e foco a todos que estão compartilhando um território, seja ele situado em pequenas ou grandes cidades. São todos importantes pois são todos sujeitos do mesmo território, sejam eles bebês, crianças ou cuidadores.

Cidades de 15 minutos: como atender às necessidades de bebês, crianças pequenas e cuidadores





Publicação do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento e Fundação Bernard van Leer.

Considerar as crianças coconstrutoras da sociedade e sujeitos de direitos é ter presente que as políticas públicas são para crianças, mas também com as crianças, entendendo sua participação como fundamental. Por exemplo, quando um pesquisador assume as crianças como parceiras de pesquisa, quando um arquiteto dialoga com as crianças como construtoras de espaços, quando um político as escuta como idealizadoras de políticas, tudo isso é fundamental para o exercício da cidadania infantil. Na sequência, sugerimos uma experiência em São Paulo, iniciada em 2012, que demonstra uma forma de dar concretude à participação infantil através do chamado “Conselho Mirim”.

41

MATERIAL
BÁSICO

play

EMEI Dona Leopoldina

Conselho Mirim, formado por crianças da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Dona Leopoldina, em São Paulo.

Trecho da palestra do ciclo de seminários Educação e infâncias em contextos de crises, disponível originalmente no canal do YouTube do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil, 2021.

Note como ao longo deste curso conversamos sobre como a relação entre criança e cidade pode ser vista sob diferentes perspectivas; a cidade que cuida é uma dessas perspectivas. Esse debate estaria incompleto se não considerássemos o papel fundamental que uma instituição tem na vida das crianças: a escola, notadamente a escola pública no contexto brasileiro.

42

A centralidade da escola como instituição cuidadora da e na cidade não deve ser confundida com a ideia de ser ela o único espaço onde o cuidado e a educação acontecem. A própria ideia de Cidade Educadora já nos traz certo questionamento e expansão desses limites conceituais, aceitando que outras relações, instituições e outras instâncias de socialização são fundamentais na educação e na formação das crianças e dos adolescentes.

O que queremos dizer é que a escola é estratégica no sentido de “amarrar as pontas” do debate. Do ponto de vista urbano, a escola é o local do bairro onde os mais diferentes tipos de transeuntes e motoristas se juntam todo dia em um movimento pendular “da casa até a escola”. Em frente à escola se encontram pais, irmãos, professores, vendedores ambulantes, motoristas de vans numa rica sociabilidade. Nos fins de semana, muitas escolas acolhem a comunidade escolar em festas e atividades esportivas e de lazer.

43

A política educacional brasileira permitiu, até antes da pandemia da Covid-19, o acesso à escola pela grande maioria das crianças brasileiras. Isso foi algo histórico em nosso país, pois significou a presença de políticas públicas na vida de milhões de famílias, fenômeno que comumente é referenciado como capilaridade das políticas.

Em verdade, há uma expectativa de que a quase universalidade da escola e sua capilaridade no território sejam formas de garantia e de efetivação de diversos direitos no Brasil. A capilaridade da escola pública pode possibilitar que a dimensão do território educativo ganhe centralidade nas formas de implementação das diversas políticas públicas. Perceba como a escola de Mariana é um dos espaços centrais para a garantia de seus direitos, pois Mariana, ao frequentá-la, tem acesso a iniciativas na educação, na cultura, no lazer, na saúde, além de participar de encontros entre diversos sujeitos e grupos do bairro.

É, portanto, nessa cidade educadora, especialmente em sua escola, que Mariana pode ser compreendida como um sujeito de direitos: direito de ser protegida, cuidada, de ter acesso à cidade como um todo, etc. Quando Mariana recebeu a vacina e os recados do posto de saúde para sua avó, perceba como a escola é significativa na nossa discussão.

44

A escola também pode ser capaz de proporcionar e viabilizar a escuta e a participação das crianças, constituindo um importante espaço de manifestação da cultura infantil na cidade, de forma a dialogar mais com a criança em todas as etapas do processo educativo. Tais elementos compõem o que temos chamado de pedagogias da infância, como vimos no Módulo 3.

No texto a seguir, o professor Levindo Diniz Carvalho analisa a importância de tais pedagogias, verificando a importância de uma educação menos autoritária, rígida ou disciplinadora, ou seja, uma educação que dê mais voz às crianças e que as coloque “no centro” de uma relação pedagógica.

45

MATERIAL
BÁSICO

leitura

Clique aqui para
ler o texto

Crianças e infâncias na educação (em tempo) integral




Artigo de Levindo Diniz Carvalho, publicado na Educação em Revista, v. 31, n. 4, 2015.

Os vídeos a seguir nos ajudam a pensar formas de promover a participação no cotidiano escolar. No projeto sobre o Jongo, crianças entre 3 e 6 anos pesquisam junto à sua professora, e através de diversas linguagens, tudo sobre esta dança afro-brasileira. Como você observa que acontece a apropriação do território pelas crianças no contexto em que você atua?

46

MATERIAL
BÁSICO

play

Jongo: uma roda pela igualdade

Vídeo disponível no canal do YouTube da Educação Física Cultural (GPEF-FEUSP), 2020.

Já no documentário mexicano a seguir, crianças de diversas idades projetam e constroem, junto a um coletivo de jovens, espaços para brincar que respondem a diversos contextos em três municípios diferentes. Na sua opinião, como as crianças foram contempladas nos processos de transformação dos espaços apresentados? Foram levadas em conta suas ideias e preocupações?

47

MATERIAL
BÁSICO

play

Somos juego

Vídeo disponível no canal do Vimeo dos Exploradores de la Ciudad, 2018.

Os exemplos anteriores revelam sentidos e significados para a referida centralidade da escola nos contextos urbanos em conexão com a ideia de infância como experiência social. Consequentemente, torna-se mais claro a importância da valorização da educação como forma de participação na sociedade em que vivemos, que em si se mostra cada vez mais desigual e segregadora, e cada vez menos acolhedora às diferenças e às identidades diversas.

Uma cidade que cuida das crianças é também uma cidade que educa. Por esse motivo, alguns autores, como Jaume Trilla Bernet, professor espanhol que trabalha na cidade de Barcelona, falam da importância de aprender com e na cidade, entendendo os múltiplos papéis que os espaços urbanos têm na educação de crianças e adultos.

48

Veja na entrevista da arquiteta e educadora Beatriz Goulart como ela aponta a importância de entender a cidade como assunto, lugar e agente na educação de crianças, jovens e adultos. Ao pensar o espaço urbano é preciso pensar a multiplicidade de estímulos, como lugar onde acontece a educação e como agente educativo, características que compõem a ideia de um território educativo.

arvore

49

MATERIAL
BÁSICO

leitura

Clique aqui para
ler a entrevista

O papel do território na educação integral e inclusiva




Entrevista com Beatriz Goulart, publicada pelo Cenpec, 2020.

Dentro desse conceito, o território de Mariana se faz educativo na medida em que é reconhecido como um lugar ampliado, que considera o habitar da infância da menina na cidade. Vários arquitetos/as e urbanistas também se interessam pelas potencialidades dos territórios educativos, constituindo-o numa rede de lugares que se conectam e que se reconstroem permanentemente, num movimento que modifica lugares, papéis e atuações, na base da construção coletiva.

A escola, especialmente no contexto brasileiro, possui um significativo papel articulador nos territórios. Como dito, diante de sua capilaridade no território, a escola se torna um local privilegiado para o planejamento coletivo e a execução conjunta de políticas que promovam o cuidado e a proteção das crianças e de suas famílias. O artigo em sequência, de Lúcia Helena Alvarez Leite e Paulo Felipe Lopes de Carvalho, estudou a relação entre escola e território, a partir da experiência de Educação Integral de Belo Horizonte.

50

Educação (de tempo) Integral e a constituição de territórios educativos





Artigo de Lúcia Helena Alvarez Leite e Paulo Felipe Lopes de Carvalho, publicado na revista Educação e Realidade, v. 41, n. 4, 2016.

Como vimos, Mariana e seus colegas são acolhidos diariamente pela escola, entre outras formas, pela garantia de uma alimentação mais adequada, ou pela proteção em casos de violência. A desigualdade sociorracial que afeta a infância se faz presente na escola e a provoca a superar papéis meramente de transmissão de conteúdos didáticos, compreendendo a educação em sua perspectiva mais ampla e complexa.

Para que a escola exerça esse papel de articulação, é fundamental que ultrapasse seus muros e dialogue com seu entorno, de maneira a possibilitar que as atividades pedagógicas incorporem as formas de vida e levem em conta a socialização das crianças na relação com a comunidade. Esta inclui os comerciantes do bairro, os vizinhos, as donas do mercado e da lojinha e as demais pessoas presentes nos deslocamentos diários das crianças, por exemplo.

51

No vídeo a seguir, a educadora Bartira Cruz, do Coletivo Infâncias da Zona Leste, que fica em um dos extremos da periferia da cidade de São Paulo, compartilha sua experiência de articulação comunitária com a escola.

MATERIAL
BÁSICO

play

Coletivo Geral Infâncias - Projeto Substantivo Coletivo convida o Coletivo Infâncias da Zona Leste

Live realizada pelo Instagram do Coletivo Geral Infâncias, 2021.

52

A articulação da escola com o território implica também planejar, conjuntamente, encontros dos diversos moradores, agentes e representantes das políticas públicas que alcançam Mariana. Os exemplos que demos até agora se referem à atuação de setores que representam uma política multissetorial de atendimento à Mariana, cada uma desenvolvendo sua ação, ainda que utilizando o espaço da escola como espaço de encontro. Representantes da área da saúde estão lá, em certos momentos, assistentes sociais; em outros, uma reunião do movimento de mães do bairro acontece na escola… Porém, cabe avançar nessa articulação, no caso de Mariana e de tantas outras crianças.

Como vimos no tópico anterior, a questão que está em jogo hoje, diante da complexidade da vida das crianças, é a importância de um trabalho efetivamente intersetorial, potencializando o papel articulador da escola. A desigualdade no espaço da cidade não deve impedir a articulação intersetorial e territorializada das políticas.

Cabe destacar ainda que a ideia de articulação implica a própria escola reconhecer sua insuficiência, como único agente, para lidar com as desigualdades e suas consequências territoriais. A escola não pode ser o único setor responsávelpor Mariana, na mesma medida em que devemos ultrapassar a ideia de que a escola é o único lugar possível de cuidado, educação e formação de crianças.

53

Entretanto, as fragilidades do trabalho intersetorial vêm sobrecarregando o setor da educação no atendimento aos direitos fundamentais das crianças e de suas famílias. É justamente nessa direção que a noção de apoio, a colaboração mútua e o suporte no território vão ganhando cada vez mais espaço, sentido e relevância.

A partir de objetivos comuns, tais suportes, considerados informais e menos institucionalizados, surgem frequentemente na luta pela garantia dos direitos das crianças, com a escola assumindo protagonismo ou realizando um trabalho em conjunto com outros atores. Vários pesquisadores apontam a relevância desse fenômeno social, especialmente quando as investigações são realizadas em territórios periféricos, concluindo que as redes garantem suporte, proteção, apoio e colaboração mútua. Como exemplo, indicamos a tese de doutorado de Aline R. Gomes, que buscou compreender as relações de cuidado em uma escola pública de tempo integral do município de Belo Horizonte, analisando também a construção de redes de cuidado a partir da escola pesquisada.

54

Infância e relações de cuidado em escola pública de tempo integral

Confira a tese de doutorado de Aline Regina Gomes, defendida, em 2019, junto ao Programa de Pós‑Graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, que buscou compreender as relações de cuidado em uma escola pública de tempo integral do município de Belo Horizonte, analisando também a construção de redes de cuidado a partir da escola pesquisada.

Cabe lembrar que Mariana também está amparada legalmente e institucionalmente pela conhecida Rede de Proteção, instituída a partir dos marcos teóricos no Brasil, especialmente aqueles associados ao Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Há também outras experiências nesse sentido, como o Sistema de Cuidado, direcionado às mulheres da cidade, em íntima relação com as crianças, na cidade de Bogotá.

55

Sistema distrital de cuidado: tiempo y servicios para las mujeres


Plataforma da Alcaldía Mayor de Bogotá, Colômbia, 2022.

Uma iniciativa que obteve êxito em reconhecer a importância das redes, da cidade como educadora e dos territórios educativos, além de educar, proteger e cuidar das crianças, foi o Programa Escola Integrada (PEI) em Belo Horizonte.

Conforme as diretrizes municipais da época em Belo Horizonte, o PEI possibilitou aos estudantes, por meio do aumento da carga horária na escola, o acesso às diferentes atividades nas áreas pedagógica, cultural, esportiva, artística, de lazer e formação cidadã. O Programa buscou ampliar os tempos, espaços e oportunidades de aprendizagens dos estudantes por meio da oferta de aulas-passeio e oficinas no contraturno escolar. Lançado oficialmente em 2007, o PEI foi elaborado como política pública municipal a partir da Secretaria de Educação. Assista a um dos documentários produzidos à época dos momentos iniciais do PEI na cidade de Belo Horizonte.

56

MATERIAL
BÁSICO

play

Documentário Escola Integrada BH

Vídeo disponível no canal do YouTube do Bemvinda Filmes, 2009.

Especialmente amparado pelo Programa Mais Educação, mencionado anteriormente, por meio do orçamento federal, o PEI induziu a Educação Integral e a rápida ampliação na oferta de vagas para a maioria dos municípios brasileiros. Na reportagem a seguir, veja como o conceito de Educação Integral é abordado pela professora Lucinha Alvarez, destacando outros formatos educativos e a importância da escola e das políticas públicas atuarem conjuntamente para cuidar das crianças, pautadas em ações governamentais integradas na cidade, a partir de diversos setores em diálogo.

57

MATERIAL
BÁSICO

play

Educação integral está na pauta da Reunião Anual da SBPC

Vídeo disponível no canal do YouTube da TV UFMG, 2017.

Comunidade Integrada: a cidade para as crianças aprenderem





Publicação da Prefeitura de Belo Horizonte, 2008.

58

Assim, em Belo Horizonte, o Programa significou a associação de atividades de diversas naturezas, considerando os sujeitos mais integrais e os processos educativos mais ampliados, de formação cognitiva, afetiva, humana, atitudinal e corporal. Mariana frequentava o PEI na sua própria escola, com oportunidades educativas diferentes durante seu tempo escolar, que exigiam o fortalecimento do trabalho coletivo e articulado dos responsáveis por essas práticas.

Até pouco tempo, o PEI era uma política pública municipal consolidada na cidade de Belo Horizonte, mas o processo de desconstrução se iniciou entre 2016 e 2017, por influência do Programa Novo Mais Educação, do Governo Federal. Embora ainda reconhecido pelas comunidades e escolas da cidade, o PEI não consta mais institucionalmente na agenda da gestão educacional do município. Atualmente, o programa é nomeado como Tempo Integral e o formato é pautado no reforço escolar, que ganhou força especialmente após o período pandêmico mais restritivo.

A perspectiva da Educação Integral tornou-se objeto de investigação de diversos pesquisadores do país, muitas vezes organizando publicações com grupos da sociedade civil, instituições e associações, como no material a seguir elaborado pelo Centro de Referências em Educação Integral e o Instituto C&A.

59

MATERIAL
BÁSICO

Clique aqui
para ler o texto.

Educação Integral nas Infâncias: pressupostos e práticas para o desenvolvimento e a aprendizagem de crianças de 0 a 12 anos


Publicação organizada pelo Centro de Referências em Educação Integral e Instituto C&A, 2017.

Por meio da divulgação em coletâneas ou artigos científicos, foi possível perceber que a pauta da Educação Integral e os formatos que essa adquiriu em nosso país, como o PEI em Belo Horizonte, são recorrentemente associados à garantia de direitos das crianças e adolescentes. Além disso, outros estudos sinalizam que investir em Educação Integral tem influências positivas na vida das famílias e do território como um todo, não sendo somente as crianças os únicos sujeitos diretamente envolvidos ou os únicos beneficiários. Isso demonstra como o conceito de Educação Integral ultrapassa o campo da educação, interessando a todos que trabalham com políticas sociais.

60

Por exemplo, quando Mariana frequentava o PEI, sua família recebia frequentemente notícias sobre vários acontecimentos na cidade. Tais eventos se referiam às oportunidades na área de lazer, cultura ou saúde. A família também recebia convites para integrar grupos de outros bairros e regiões de Belo Horizonte, como cooperativas e associações de economia solidária.

A seguir, veremos iniciativas de construção de políticas públicas, pautadas na efetiva escuta e na participação das crianças. Até aqui, priorizamos focar na importância da integração das políticas no atendimento à criança como cidadã, em especial analisando o papel da escola. Por isso, Mariana foi tão importante como exemplo de um sujeito integral em suas especificidades. Entendemos, porém, que tal tarefa se mostra incompleta se não analisarmos algumas experiências de participação das crianças no planejamento e na execução das políticas.

61

4.Como as crianças podem participar na construção de políticas públicas?

Desde o início dessa trajetória formativa, não tivemos a pretensão de instrumentalizar ou construir manuais, formas padronizadas e fechadas de conhecimento sobre a criança e a cidade. Acreditamos que estar diretamente em interação com as crianças, promover diálogos sensíveis às infâncias contemporâneas e acreditar nos saberes desses sujeitos são maneiras mais democráticas e cidadãs de ocuparmos a cidade junto com elas.

Com isso, você pôde perceber como fazer perguntas foi importante nesse processo, nos guiando e orientando ao longo do percurso formativo. Diante dessa última pergunta do material do curso, a intenção é refletir sobre como uma estratégia simples dá sentido e estrutura a algo tão complexo como a elaboração de uma política pública.

No texto sugerido a seguir, as autoras discutem a relevância da efetiva participação infantil no contexto escolar e mostram que as crianças, ao falarem e serem ouvidas sobre suas experiências educacionais, deram pistas e sinais que apoiaram a construção de uma Educação Infantil de qualidade.

62

MATERIAL
BÁSICO

Cliqueaquipara
ler o texto.

Políticas públicas e a voz das crianças


Artigo de Silvia Helena Vieira Cruz e Cristiane Amorim Martins, publicado na Laplage em Revista, v. 3, n. 1, 2017.

O aspecto instigante é perceber que esse exercício pode e deve ser extrapolado para todos os contextos com os quais compartilhamos a vida com as crianças, inclusive a cidade como um todo. A seguir, apresentamos duas experiências de políticas intersetoriais na América Latina que contaram com a participação de crianças na sua elaboração.

menino jogando bola

63

Consejos de Niñas y Niños (Conselho de Crianças), em Rosário, Argentina

Desde 1996, a cidade de Rosário, na Argentina, criou conselhos infantis como forma de representação dessa parcela da população da cidade. Pela existência dos Conselhos, as decisões em nível de política pública passaram a considerar a opinião de meninos e meninas moradores da cidade.

A cada ano, a iniciativa possibilita saber o que as crianças desejam para sua cidade, o que se converte efetivamente em estratégias conectadas com o universo infantil. No ano de 2021, por exemplo, a bicicleta adquiriu uma centralidade no Conselho de Crianças, pois, conforme elas, a bicicleta as fazia sentir liberdade, felicidade, confiança e coragem ao usá-la na companhia de outras meninas e outros meninos. A partir dessas ideias, o projeto proposto pelo Conselho de Crianças elencou diversas ações na cidade, que incluíram bicicletadas, escolas de ciclistas, dias comemorativos relacionados à bicicleta e estímulo à criação e incorporação de circuitos ciclísticos já existentes. Observem como essa organização é expressão do direito à mobilidade, mas, acima de tudo, é expressão do direito das crianças à cidade de Rosário

64

MATERIAL
COMPLEMENTAR

Tríptico de la infancia, aprender jugando

Neste vídeo, a Coordenadora de Direção da Juventude, Carolina Cardoso, apresenta o projeto do Tríptico da Infância, uma iniciativa do Ministério da Cultura na cidade de Rosário, na Argentina, que propõe a criação de espaços para crianças na cidade.

Vídeo disponível no canal do YouTube do Sustentar TV, 2016. É possível inserir legendas com tradução automática para o Português.

Francesco Tonucci, pedagogo e grande apoiador da iniciativa na cidade, deu uma entrevista ao portal Educação e Território, em 2016, contando um pouco do que foi esse processo. Nela, Tonucci cita Victoria, uma menina moradora de Rosário, que participou à época do Conselho de Crianças. Em uma das reuniões Victoria disse: “Tudo o que está acontecendo é culpa dos adultos. É preciso limitar o poder dos adultos”. Tonucci explicava como a participação das crianças é a expressão da concentração do poder, pois ele acredita que se trata de uma das formas democráticas de compartilhar a cidade.

A entrevista completa de Francesco Tonucci encontra-se disponível no Módulo 1. Confira a seguir um artigo dos professores Levindo Carvalho e Maria Cristina de Gouvea. Ambos apresentam vários eixos que sustentam a proposta do Conselho de Crianças, interligada com a importância da educação e de trabalhos intersetoriais.

65

Infância urbana, políticas e poéticas: diálogos sobre a experiência da cidade de Rosário/ Argentina





Artigo de Levindo Diniz Carvalho e Maria Cristina Gouvea, publicado nos Cadernos de Pesquisa em Educação, n. 49, 2019.

Programa Ninõs Primero (Primeiro as Crianças), em Bogotá, Colômbia

A experiência que destacamos de Bogotá tem íntima relação com o próprio título do Programa. Desde 2016, a cidade adotou várias medidas que colocaram as crianças em evidência, ocupando o espaço das ruas, especialmente pela integração da iniciativa com as escolas e as formas de se deslocar na cidade.

Na prática, o Programa municipal vem demonstrando que planejar a mobilidade escolar traz senso de pertencimento e apropriação das crianças e dos adolescentes à cidade, transformando o olhar sobre o espaço público, diante da garantia de segurança nos deslocamentos. Por exemplo, as crianças passaram a preferir ir para as escolas a pé ou de bicicleta com os amigos, já que percebiam trajetos mais seguros. Imaginem a conquista que isso representa nos termos de uma metrópole como Bogotá.

66

Pode parecer simples pensar no trajeto entre a casa e a escola das crianças, mas o Programa trouxe estratégias mais holísticas ao ir e vir da maior cidade da Colômbia. São caravanas de pedestres e ciclistas (Ciempiés e Al Colegio en Bici), um parque educacional (MoviParque), duas faixas prioritárias de ônibus, o check-up periódico do transporte escolar e a criação de zonas escolares. Note que em todas elas fica nítida a necessidade de responsabilidade compartilhada: instituições, escolas e comunidades têm diferentes papéis e deveres enquanto parte do sistema de mobilidade de uma cidade.

No material de divulgação do Programa, é possível consultar cada uma dessas estratégias, incluindo dados interessantes sobre a mobilidade infantil e os impactos da iniciativa. Vale a consulta, especialmente, porque percebemos que colocar as crianças em primeiro lugar impacta positivamente a cidade como um todo, valorizando a vida em suas diversas dimensões.

67

MATERIAL
COMPLEMENTAR

Documental Niños Primero

Neste documentário, crianças, famílias e educadores que integram os projetos Ciempiés Niños Primero e Al Colegio en Bici, promovidos pela Secretaria de Educação e da Secretaria de Mobilidade em Bogotá, compartilham de sua experiência de deslocamento pela cidade e conformação de uma rede de apoio junto às crianças de uma comunidade.

Vídeo disponível no canal do YouTube do Ciempiés Niños Primero. É possível inserir legendas com tradução automática para o Português.

MATERIAL
BÁSICO

aqui para
acessar o site.

Programa Ninõs Primero


Plataforma da Secretaria Distrital de Mobilidade de Bogotá, Colômbia, 2017.

68

Pela concretude dos exemplos, buscamos mais do que inspirações. Buscamos esperançar, como já dizia Paulo Freire, na companhia das crianças pela cidade.

De fato, a maneira com que o curso foi elaborado também nos exigiu o exercício da esperança, notadamente pelo momento em que vivemos. Uma pandemia que marcou a humanidade, nos mostrando que cada vida importa, e muito! Um momento de indefinição das políticas públicas no Brasil, pois várias progressivamente foram desconstruídas nos últimos anos, notadamente aquelas da educação e da saúde, com impactos diretos na população infantil. Uma época marcada pelo cansaço da exposição virtual, uma vez que muito da vida nos últimos dois anos somente foi possível acontecer pelas diversas telas do ambiente virtual.

Enfim, esperançamos com você, cursista, e esperançamos ao formar uma equipe de trabalho A criança e a cidade. Compreendemos que os encontros aqui, proporcionados em suas diferentes formas, foram lampejos desse sentimento, que se diferencia do simples esperar. Com as ações-esperança é possível encontrar mais democraticamente com as crianças na cidade, alimentando nossos olhares para a sensibilidade, participação e respeito às suas infâncias.

69

predio

70

Gostou do assunto e quer saber mais?

Clique aqui
para LER

NOTÍCIA

Veja na notícia seguinte como investir em Educação Integral significa valorizar as crianças como sujeitos integrais considerando também os impactos na sociedade como um todo.

Clique aqui
para LER

GUIA

O Guia “Gestão Intersetorial no Território” ocupa-se dos marcos legais do Programa Mais Educação, das temáticas Educação Integral e Gestão Intersetorial, da estrutura organizacional e operacional do Programa, dos projetos e programas ministeriais que o compõem e de sugestões para procedimentos de gestão nos territórios.

Clique aqui
para LER

ESTUDO

O amplo estudo “Crianças e Adolescentes de Territórios Urbanos em Situação de Violência” teve como como objetivo diagnosticar o que existe e evidenciar o que não existe de informações sobre o acesso à educação de crianças e adolescentes em maior situação de vulnerabilidade ou excluídas das políticas sociais.

Clique aqui
para LER

DOSSIÊ

A história e a trajetória do Programa BH Cidadania pode ser consultada na obra “Programa BH Cidadania:Teoria e Prática da Intersetorialidade”, sob a organização de Mourão, Passos e Faria (2011).

LITERATURA

A prefeitura é nossa (1985), por Giselda Laporta Nicolelis.

Em 1985, a escritora de literatura infanto‑juvenil, Giselda Laporta Nicolelis, conta uma história em que, na cidade fictícia de Rio Doce, as crianças podem exercer o mandato de prefeito por um dia. Com ilustrações de Guido Arrighi, a obra revela possibilidades da participação infantil para a construção de cidades mais alegres.

Você pode baixar o PDF interativo deste módulo.

Se você for ler o conteúdo em telas pequenas (celulares e tablets), clique aqui.
Se você for ler o conteúdo em telas maiores ou deseja imprimir o material em folhas A4,clique aqui.

minhoca minhoca

Referências bibliográficas

Seminários

cliquelaranja

Os seminários do curso serão transmitidos pelo canal do YouTube do NEPEI.

Seminário 1: "Infância, cidade e educação"

Data: 30/08/2022.

Convidados: Maria Cristina Gouvêa (UFMG), Lúcia Helena Alvarez (UFMG), Levindo Diniz Carvalho (UFMG) e Luciana Maciel Bizzotto (NEPEI)

Seminário 2: "A criança e a cidade"

Data: 27/09/2022.

Convidados: Eveline Trevisan (BHTRANS/PBH), Márcia Gobbi (USP), Samy Lansky (UFMG/Amigos da Rua). Mediação: José Alfredo Debortoli (UFMG) e Maria Fernanda Godoy (apé-estudos em mobilidade).

Seminário 3 - A criança e a cidade
Seminário 4 - A criança e a cidade

Datas dos próximos seminários: 25/10 e 22/11.

cartilha